26 de dezembro de 2008

O Normal e o Patológico Segundo Georges Canguilhem

Rilva Lopes de Sousa Muñoz

Como médicos, passamos grande parte do tempo distinguindo entre biologia “normal” e “anormal”.
Quando nos confrontamos com algo grosseiramente diferente do usual, não temos dificuldade de separar o normal do anormal. Todos nós conhecemos bem as fotografias de livros-textos clássicos de Semiologia Médica que mostram exemplos óbvios de bócio, elefantíase, ascite volumosa, por exemplo. Saber reconhecer este grau de anormalidade é uma tarefa simples.
Com maior freqüência, precisamos fazer distinções bem mais sutis entre normal e anormal. Uma dor torácica fugaz é um pleuris ou uma dor inconsequente? Um sopro cardíaco sistólico suave é um sinal de doença cardíaca valvar ou um "sopro inocente"? Níveis plasmáticos de fosfatase alcalina levemente elevados são um sinal de doença hepática, doença de Paget assintomática ou nenhuma delas?
Decidir o que é anormal torna-se ainda mais difícil entre pacientes atendidos na atenção básica à saúde, onde manifestações sutis de doença estão livremente mescladas com queixas habituais de pessoas saudáveis. Além disso, nem sempre é possível investigar todas as manifestações que nos suscitam dúvidas. Já no contexto hospitalar, onde os pacientes já foram triados e selecionados para receber assistência especializada, o que acontece nas enfermarias dos hospitais universitários, por exemplo, geralmente fica claro que alguma coisa está errada. A tarefa, então, é aperfeiçoar a descrição do problema e tratá-lo.
“O Normal e o Patológico” é o título de um livro que me chamou a atenção na estantes da Biblioteca Central da UFPB. "Que título mais semiológico!", pensei. Peguei imediatamente o livro e o folheei. Na página 26 encontrei a seguinte frase: “Esperávamos da Medicina justamente uma introdução a problemas humanos concretos”. Na p. 29: “Seria o estado patológico apenas uma modificação quantitativa do estado normal?” Nas páginas seguintes, pude verificar que o autor dissertava sobre o conceito de normal. E a questão fundamental colocada era: como a medicina estabelece o que é normal? Este livro soberbo foi escrito por Georges Canguilhem (1904-1995), e constitui um marco fundamental nesse novo campo do saber humano – a Epistemologia. Segundo o autor, a medicina, muito mais do que uma ciência propriamente dita, é uma técnica ou uma arte situada na encruzilhada de várias ciências. Este livro é, pois, uma tentativa de integrar à especulação filosófica alguns dos métodos e aquisições da medicina.
Para o filósofo, saúde é a “inconsciência do corpo”. O ponto de partida da análise de Canguilhem são duas frases de Leriche: “A saúde é a vida no silêncio dos órgãos” e “a doença é aquilo que perturba os homens no exercício normal de sua vida e em suas ocupações e, sobretudo, aquilo que os faz sofrer” (Leriche, 1936, citado por Canguilhem, [1966] 1982: 67). Em outros termos, saúde é a inconsciência do corpo, sendo a sua consciência despertada pelos limites impostos à saúde, ou seja, pela doença, seus sofrimentos e suas dores. Este é um entendimento que Canguilhem endossaria, na medida em que esta é uma definição de doença que deriva do doente e não do médico.
Canguilhem discute principalmente o uso ambíguo do termo normal como valor ou como fato, ou seja, que normalmente é aquele composto por norma (valor) e média (fato). Frequentemente, encontramos como resposta para a pergunta: “O que é o normal?” o enunciado: “a maior frequência estatística”. É como se o conceito de média fosse “um equivalente objetivo e cientificamente válido do conceito de normal ou de norma” (Canguilhem, 1982: 118). Mas como decidir, só com base em procedimentos estatísticos, dentro de que intervalos de variação com relação à uma posição média teórica os indivíduos ainda podem ser considerados normais? Reaparece a questão da subordinação da média – objetiva, descritiva – à norma – individual, avaliativa. Como afirma Canguilhem: “Um traço humano não seria normal por ser frequente; mas seria frequente por ser normal” (Canguilhem, 1995: 126).
A característica fundamental do conceito de saúde, como discutido na literatura, é reconhecida inicialmente na noção de “norma”, “regra”, tanto na Bioestatística quanto no senso comum. Uma breve análise do corpo da literatura revela algumas divergências nas definições de saúde. Para Canguilhem, a saúde pode ser caracterizada, como uma analogia, a um estado de “plenitude”, que seria o estado ideal. Mas não haveria diferentes níveis de normatividade (biológico, psicológico, social, moral)? Claro que há diferentes níveis de normatividade, dependendo do ângulo do qual se visualiza a questão. Para Canguilhem (1995; p. 183), "procurar a doença ao nível da célula é confundir o plano da vida concreta - em que a polaridade biológica estabelece a diferença entre a saúde e a doença - e o plano da ciência abstrata, no qual a doença de um ser vivo não se situa em determinadas partes do organismo". E ele continua, afirmando que quando alguém fala em “patologia objetiva”, quando alguém acha que a observação anatômica e histológica, que o exame bacteriológico, são métodos que permitem fazer cientificamente o diagnóstico da doença até mesmo sem nenhum interrogatório nem exploração clínica, se está cometendo a mais grave confusão.
Canguilhem diz que o patológico recebe a designação a partir do normal, não precisamente como a ou dis, mas como hiper ou hipo, diferindo a saúde da doença, o patológico do normal, como um atributo difere de outro. Com isso, podemos entender que aquele que recebe a nomenclatura ou rótulo de doente, o receba por enxergar de menos, ouvir de menos, sentir demais, com mais intensidade, as emoções da vida, como no caso de deficientes visuais e auditivos. De fato, a estatística traduz uma normatividade social, e que somos e nos enxergamos através dos nossos valores construídos, ou constituídos por nós. Em um contraponto com os aspectos deste trabalho, então a aplicação de um discurso que alcance a todos expressa os valores de acordo com o que a sociedade entende ser normal, e aquilo ou aqueles que, por algum motivo, não se encaixam nos padrões da normalidade.
A normalidade como média não expressa fielmente os achados clínicos e laboratoriais da medida da função dos órgãos ou organismos sadios, pois essas medidas oscilam em torno da média. Esta solução implica em considerar como normal uma faixa de distribuição. Levando-se em conta as características normais de uma população, considera-se como faixa indicativa dessa normalidade a expressão estatística que descreve a sua maioria. Resultados claros de diagnóstico (por exemplo, leucemia aguda, agranulocitose) decorrentes de um hemograma completo raramente apresentam sérias consequências diagnósticas na atenção primária. As fronteiras entre as anormalidades estatisticamente anormais e clinicamente relevantes e as investigações adicionais recomendadas nessas situações são, no entanto, menos claras.
Canguilhem reformula radicalmente os conceitos de Claude-Bernard de “doença”, “saúde” e “patologia”. A abordagem de Claude-Bernard e a de Canguilhem são duas abordagens diferentes desses conceitos. A visão de Claude-Bernard tem dominado a filosofia da medicina nos Estados Unidos, e é chamada de "reducionista" e "relativista". Os filósofos e os médicos americanos são geralmente familiarizados com os escritos de Claude Bernard (1813-1878), especialmente a sua Introdução ao Estudo Experimental de Medicina (1865), enquanto a epistemologia médica de Georges Canguilhem, que é francês, é praticamente desconhecida em nações de língua inglesa. Mas estas duas abordagens partilham o pressuposto básico de que o conceito de saúde não pode ser baseado apenas no biológico. Segundo Canguilhem (1995, p. 144)), “a fronteira entre o normal e o patológico é imprecisa para diversos indivíduos considerados separadamente, mas é perfeitamente precisa para um único e mesmo indivíduo considerado sucessivamente”.
Canguilhem identificou uma tensão entre as concepções de doença que surgiram nos séculos XVII e XVIII e outras também de longa data. As concepções mais antigas que ele identificou, como, primeiro, a tradição hipocrática, segundo a qual a doença é definida como um distúrbio dinâmico dos quatro humores, e, segundo, o impulso “ontológico” (a questão do ser enquanto verbo) para localizar a doença e, portanto, identificar os meios pelos quais doença aumenta ou diminui o funcionamento do indivíduo. Canguilhem acreditava que a teoria microbiana de Louis Pasteur, por exemplo, devia sua aceitação no final do século XIX à incorporação do desejo de “ver” e expulsar o agente etiológico de problemas de saúde. 
Para Canguilhem, Saúde e doença não eram mais qualitativamente opostas. Na abordagem de seus contemporâneos Auguste Comte e Claude Bernard, Canguilhem identificou uma suposição de que a ciência poderia avançar melhor estabelecendo continuidade entre saúde e doença. Isso, para Canguilhem, levantou a perspectiva de que o conceito de doença pudesse ser incluído em uma escala contínua de normalidade. Três de seus argumentos parecem pertinentes ao debate atual sobre o diagnóstico de transtorno de personalidade.
Primeiro, anomalia não seria anormalidade. Canguilhem estava preocupado com o fato de diferenças qualitativas, como a saúde e a doença, terem sido obscurecidas pela identificação de uma continuidade quantitativa. A diferença qualitativa entre cores, argumentou ele, não foi diminuída pelo fato de que cada uma poderia ser posicionada em um espectro de comprimentos de onda. Ele contrastou suas opiniões com as de Claude Bernard, argumentando que um homem saudável e um homem com diabetes mellitus diferem mais do que apenas a quantidade de glicose na corrente sanguínea. Um estado patológico não era simplesmente uma versão maior ou menor de um estado fisiológico. 
Canguilhem seguiu a ideia de que nenhuma lista de sintomas e sinais ou medida de desvio de uma norma estatística poderia formar a base de uma definição de doença.  Ele novamente usou o exemplo do diabetes para apontar para as relações entre diferentes funções biológicas e argumentou que é a contribuição deles para o mau funcionamento do organismo vivo como um todo que justifica o rótulo da doença. Ele citou os argumentos de Henry Ey com referência à doença mental: que o normal não é um correlato médio a um conceito social, nem um julgamento da realidade, mas um julgamento de valor. 
Segundo, Canguilhem defendeu que ser saudável significa ser capaz de se adaptar e superar obstáculos. A saúde permitia “uma margem de tolerância para as inconsistências do meio ambiente”. Terceiro, afirmou ele, esse processo de adaptação é ativo, e não passivo. O que caracteriza a saúde é a possibilidade de transcender uma norma, de tolerar infrações e de instituir novas normas em resposta. Essa qualidade ele chamou de “normatividade”. Os “seres normativos” são capazes de lidar com conflitos de uma maneira que deixa aberta a possibilidade de correção futura. Até um organismo doente exibiria normas biológicas. Na presença de uma infecção, um nível mais alto de anticorpos é “normal”. Um organismo é saudável na medida em que é capaz de se ajustar a essas normas diante das mudanças de circunstâncias. Quando a infecção se resolve, a contagem de leucócitos deve mudar. A condição patológica é aquela em que a nova norma seria incapaz de realizar esse tipo de ajuste. 
Assim, diversidade não significa doença.

Referências
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.