Quando nos confrontamos com algo grosseiramente diferente do usual, não
temos dificuldade de separar o normal do anormal. Todos nós conhecemos bem as
fotografias de livros-textos clássicos de Semiologia Médica que mostram
exemplos óbvios de bócio, elefantíase, ascite volumosa, por exemplo. Saber
reconhecer este grau de anormalidade é uma tarefa simples.
Com maior freqüência, precisamos fazer distinções bem mais sutis entre
normal e anormal. Uma dor torácica fugaz é um pleuris ou uma dor inconsequente?
Um sopro cardíaco sistólico suave é um sinal de doença cardíaca valvar ou um
"sopro inocente"? Níveis plasmáticos de fosfatase alcalina levemente
elevados são um sinal de doença hepática, doença de Paget assintomática ou
nenhuma delas?
Decidir o que é anormal torna-se ainda mais difícil entre
pacientes atendidos na atenção básica à saúde, onde manifestações sutis de
doença estão livremente mescladas com queixas habituais de pessoas saudáveis.
Além disso, nem sempre é possível investigar todas as manifestações que nos
suscitam dúvidas. Já no contexto hospitalar, onde os pacientes já foram triados
e selecionados para receber assistência especializada, o que acontece nas
enfermarias dos hospitais universitários, por exemplo, geralmente fica claro
que alguma coisa está errada. A tarefa, então, é aperfeiçoar a descrição do
problema e tratá-lo.
“O Normal e o Patológico” é o título de um livro que me chamou a atenção
na estantes da Biblioteca Central da UFPB. "Que título mais
semiológico!", pensei. Peguei imediatamente o livro e o folheei. Na página
26 encontrei a seguinte frase: “Esperávamos da Medicina justamente uma
introdução a problemas humanos concretos”. Na p. 29: “Seria o estado patológico
apenas uma modificação quantitativa do estado normal?” Nas páginas seguintes,
pude verificar que o autor dissertava sobre o conceito de normal. E a questão
fundamental colocada era: como a medicina estabelece o que é normal? Este livro
soberbo foi escrito por Georges Canguilhem (1904-1995), e constitui um marco
fundamental nesse novo campo do saber humano – a Epistemologia. Segundo o
autor, a medicina, muito mais do que uma ciência propriamente dita, é uma
técnica ou uma arte situada na encruzilhada de várias ciências. Este livro é,
pois, uma tentativa de integrar à especulação filosófica alguns dos métodos e
aquisições da medicina.
Para o filósofo, saúde é a “inconsciência do corpo”. O ponto de partida
da análise de Canguilhem são duas frases de Leriche: “A saúde é a vida no
silêncio dos órgãos” e “a doença é aquilo que perturba os homens no exercício
normal de sua vida e em suas ocupações e, sobretudo, aquilo que os faz sofrer”
(Leriche, 1936, citado por Canguilhem, [1966] 1982: 67). Em outros termos,
saúde é a inconsciência do corpo, sendo a sua consciência despertada pelos
limites impostos à saúde, ou seja, pela doença, seus sofrimentos e suas dores.
Este é um entendimento que Canguilhem endossaria, na medida em que esta é uma
definição de doença que deriva do doente e não do médico.
Canguilhem discute principalmente o uso ambíguo do termo normal como valor ou
como fato, ou seja, que normalmente é aquele composto por norma (valor) e média
(fato). Frequentemente, encontramos como resposta para a pergunta: “O que é o
normal?” o enunciado: “a maior frequência estatística”. É como se o conceito de
média fosse “um equivalente objetivo e cientificamente válido do conceito de
normal ou de norma” (Canguilhem, 1982: 118). Mas como decidir, só com base em
procedimentos estatísticos, dentro de que intervalos de variação com relação à
uma posição média teórica os indivíduos ainda podem ser considerados normais?
Reaparece a questão da subordinação da média – objetiva, descritiva – à norma –
individual, avaliativa. Como afirma Canguilhem: “Um traço humano não seria
normal por ser frequente; mas seria frequente por ser normal” (Canguilhem, 1995:
126).
A característica fundamental do conceito de saúde, como discutido na
literatura, é reconhecida inicialmente na noção de “norma”, “regra”, tanto na
Bioestatística quanto no senso comum. Uma breve análise do corpo da literatura
revela algumas divergências nas definições de saúde. Para Canguilhem, a saúde
pode ser caracterizada, como uma analogia, a um estado de “plenitude”, que
seria o estado ideal. Mas não haveria diferentes níveis de normatividade
(biológico, psicológico, social, moral)? Claro que há diferentes níveis de
normatividade, dependendo do ângulo do qual se visualiza a questão. Para
Canguilhem (1995; p. 183), "procurar a doença ao nível da célula é
confundir o plano da vida concreta - em que a polaridade biológica estabelece a
diferença entre a saúde e a doença - e o plano da ciência abstrata, no qual a
doença de um ser vivo não se situa em determinadas partes do organismo". E
ele continua, afirmando que quando alguém fala em “patologia objetiva”, quando
alguém acha que a observação anatômica e histológica, que o exame
bacteriológico, são métodos que permitem fazer cientificamente o diagnóstico da
doença até mesmo sem nenhum interrogatório nem exploração clínica, se está
cometendo a mais grave confusão.
Canguilhem diz que o patológico recebe a designação a partir do normal,
não precisamente como a ou dis, mas como hiper ou hipo, diferindo a saúde da
doença, o patológico do normal, como um atributo difere de outro. Com isso,
podemos entender que aquele que recebe a nomenclatura ou rótulo de doente, o
receba por enxergar de menos, ouvir de menos, sentir demais, com mais
intensidade, as emoções da vida, como no caso de deficientes visuais e
auditivos. De fato, a estatística traduz uma normatividade social, e que somos
e nos enxergamos através dos nossos valores construídos, ou constituídos por
nós. Em um contraponto com os aspectos deste trabalho, então a aplicação de um
discurso que alcance a todos expressa os valores de acordo com o que a
sociedade entende ser normal, e aquilo ou aqueles que, por algum motivo, não se
encaixam nos padrões da normalidade.
A normalidade como média não expressa fielmente os achados clínicos e
laboratoriais da medida da função dos órgãos ou organismos sadios, pois essas
medidas oscilam em torno da média. Esta solução implica em considerar como
normal uma faixa de distribuição. Levando-se em conta as características
normais de uma população, considera-se como faixa indicativa dessa normalidade
a expressão estatística que descreve a sua maioria. Resultados claros de
diagnóstico (por exemplo, leucemia aguda, agranulocitose) decorrentes de um
hemograma completo raramente apresentam sérias consequências diagnósticas na
atenção primária. As fronteiras entre as anormalidades estatisticamente
anormais e clinicamente relevantes e as investigações adicionais recomendadas
nessas situações são, no entanto, menos claras.
Canguilhem reformula radicalmente os conceitos de Claude-Bernard de “doença”,
“saúde” e “patologia”. A abordagem de Claude-Bernard e a de Canguilhem são duas
abordagens diferentes desses conceitos. A visão de Claude-Bernard tem dominado
a filosofia da medicina nos Estados Unidos, e é chamada de
"reducionista" e "relativista". Os filósofos e os médicos
americanos são geralmente familiarizados com os escritos de Claude Bernard
(1813-1878), especialmente a sua Introdução ao Estudo Experimental de Medicina
(1865), enquanto a epistemologia médica de Georges Canguilhem, que é francês, é
praticamente desconhecida em nações de língua inglesa. Mas estas duas
abordagens partilham o pressuposto básico de que o conceito de saúde não pode
ser baseado apenas no biológico. Segundo Canguilhem (1995, p. 144)), “a
fronteira entre o normal e o patológico é imprecisa para diversos indivíduos
considerados separadamente, mas é perfeitamente precisa para um único e mesmo
indivíduo considerado sucessivamente”.
Canguilhem identificou uma tensão entre as concepções de doença que
surgiram nos séculos XVII e XVIII e outras também de longa data. As
concepções mais antigas que ele identificou, como, primeiro, a tradição
hipocrática, segundo a qual a doença é definida como um distúrbio dinâmico dos
quatro humores, e, segundo, o impulso “ontológico” (a questão do ser enquanto
verbo) para localizar a doença e, portanto, identificar os meios pelos quais
doença aumenta ou diminui o funcionamento do indivíduo. Canguilhem
acreditava que a teoria microbiana de Louis Pasteur, por exemplo, devia sua
aceitação no final do século XIX à incorporação do desejo de “ver” e expulsar o
agente etiológico de problemas de saúde.
Para Canguilhem, Saúde e doença não eram mais qualitativamente
opostas. Na abordagem de seus contemporâneos Auguste Comte e Claude
Bernard, Canguilhem identificou uma suposição de que a ciência poderia avançar
melhor estabelecendo continuidade entre saúde e doença. Isso, para
Canguilhem, levantou a perspectiva de que o conceito de doença pudesse ser
incluído em uma escala contínua de normalidade. Três de seus argumentos
parecem pertinentes ao debate atual sobre o diagnóstico de transtorno de
personalidade.
Primeiro, anomalia não seria anormalidade. Canguilhem estava
preocupado com o fato de diferenças qualitativas, como a saúde e a doença,
terem sido obscurecidas pela identificação de uma continuidade quantitativa. A
diferença qualitativa entre cores, argumentou ele, não foi diminuída pelo fato de
que cada uma poderia ser posicionada em um espectro de comprimentos de
onda. Ele contrastou suas opiniões com as de Claude Bernard, argumentando
que um homem saudável e um homem com diabetes mellitus diferem mais do que
apenas a quantidade de glicose na corrente sanguínea. Um estado patológico
não era simplesmente uma versão maior ou menor de um estado fisiológico.
Canguilhem seguiu a ideia de que nenhuma lista de sintomas e sinais ou
medida de desvio de uma norma estatística poderia formar a base de uma
definição de doença. Ele novamente usou o exemplo do diabetes para
apontar para as relações entre diferentes funções biológicas e argumentou que é
a contribuição deles para o mau funcionamento do organismo vivo como um todo
que justifica o rótulo da doença. Ele citou os argumentos de Henry Ey com
referência à doença mental: que o normal não é um correlato médio a um conceito
social, nem um julgamento da realidade, mas um julgamento de valor.
Segundo, Canguilhem defendeu que ser saudável significa ser capaz de se
adaptar e superar obstáculos. A saúde permitia “uma margem de tolerância
para as inconsistências do meio ambiente”. Terceiro, afirmou ele, esse
processo de adaptação é ativo, e não passivo. O que caracteriza a saúde é
a possibilidade de transcender uma norma, de tolerar infrações e de instituir
novas normas em resposta. Essa qualidade ele chamou de
“normatividade”. Os “seres normativos” são capazes de lidar com conflitos
de uma maneira que deixa aberta a possibilidade de correção futura. Até um
organismo doente exibiria normas biológicas. Na presença de uma infecção,
um nível mais alto de anticorpos é “normal”. Um organismo é saudável na
medida em que é capaz de se ajustar a essas normas diante das mudanças de
circunstâncias. Quando a infecção se resolve, a contagem de leucócitos deve
mudar. A condição patológica é aquela em que a nova norma seria incapaz de
realizar esse tipo de ajuste.
Assim, diversidade não significa doença.
Assim, diversidade não significa doença.
Referências
CANGUILHEM,
G. O normal e o
patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.