Dizia Sir
William Osler, que "os estudos humanísticos são os hormônios que catalisam
o pensamento e humanizam a prática médica".
Hoje,
cerca de 100 anos depois, repete-se muito esse aforisma, como outras palavras,
mas com o mesmo significado. Esse tema insere-se no debate sobre a necessidade
de recuperar a dimensão humana do médico. Este é um desafio para os que se
preocupam com a formação médica.
O próprio
William Osler idealizou junto aos seus alunos a construção de uma biblioteca e
sugeriu uma lista de livros que deveriam estar sempre ao lado do médico, entre
eles a Bíblia, as obras de Shakespeare, Montaigne e Don Quixote. Atualmente, em
virtude dos vários questionamentos sobre a formação humanística do médico,
muitas escolas médicas passaram a demonstrar uma maior preocupação em ensinar
as humanidades a seus alunos.
Segundo Chervel e Compere (1999), a etimologia da palavra
"humanidades" remete ao neologismo humanitas, pela qual Cícero
traduz o grego "paideia". A educação, assim oferecida, se pretende
como uma preparação do indivíduo ao seu papel de homem, no sentido pleno do
termo. As humanidades são, em princípio, também uma educação moral.
"Paidéia" é uma palavra grega cujo significado refere-se à prática
educativa e à formação cultural do cidadão. Remete à idéia de educação ligada
aos conteúdos da cultura, das práticas artísticas, entre outros aspectos que
configuram a formação contemporânea do indivíduo. Assim, o conceito de paidéia,
entendida como a busca do sentido de uma teoria consciente da educação e do
agir do homem em sociedade, permanece como um ideal de toda educação.
Porém, hoje, a especialização e a superespecialização fazem parte
do cenário atual das universidades, que estão cada vez mais buscando atender às
necessidades de profissionais para o mercado de trabalho. E não é apenas na
Medicina. Essa formação, no entanto, centrada no tecnicismo e no
profissionalismo, pode não estar atendendo às necessidades reais da atuação do
médico. A especialidade deve ser tratada como parte de uma totalidade e não
pode servista como fora dela. Segundo Bazzo (1998), este processo é difícil de
ser realizado e deve ser feito por meio de uma formação que privilegie o
tratamento interdisciplinar da especialidade e uma formação disciplinar com
conteúdos de humanidades. A superespecialização dos estudantes pode gerar
problemas sociais, cegando o profissional para qualquer consideração que ultrapasse
o âmbito de suas competências técnicas. Um profissional especialista irá se
comportar em todas as questões que ignora, conforme Sartor (2004), não como um
ignorante, mas como um "sábio petulante no assunto".
O humanismo, na concepção de Paviani e Dal Ri Jr. (2000), objetiva
ao desenvolvimento das qualidades do homem, pregando que todas as pessoas têm
dignidade e valor, devendo-se fazer jus ao respeito dos outros. O estudante
universitário deveria possuir uma formação geral também, com "caráter transformador
do sentir, pensar e agir humanamente, centrado em uma visão de sociedade que
interage" (LINSINGEN, 2005).
Assim, as escolas médicas têm o compromisso de preparar os
estudantes para as questões morais e éticas com as quais eles vão se deparar na
vida profissional. O desafio atual é, então, de transformar a educação médica,
oferecendo à sociedade médicos competentes, mas também mais humanos e éticos.É
necessário ampliar o repertório semiológico do médico, através de uma
revalorização das dimensões psicológica e da efetiva inclusão da dimensão
social do ser humano, como forma de enriquecer os processos do diagnóstico e da
conduta. E isso faz parte essencial da formação humanística do médico.
O que seria,
então, a "formação humanística do médico"? Não significa apenas ter
compaixão e empatia pela pessoa do doente, ainda que isso seja imprescindível
na prática médica. Porém, é mais que isso. A concepção de Pessotti (1996)
sempre me pareceu perfeita para uma definição essencial desta questão, e eu a
repito muitas vezes aos meus alunos de Semiologia: “Não se trata de ser
humanitário, embora isso também seja desejável: trata-se de ser, em alguma
medida, um humanista, um conhecedor, mesmo principiante, do que constitui a
essência da chamada natureza humana: a criação de valores, a atribuição de
significado e sentido aos eventos e condições da vida.” (PESSOTTI, 1996, p.
446).
O jovem
médico, desde antes da sua graduação, já carrega sua escala de valores éticos,
estéticos e outros, e não se despe deles na relação com os pacientes. Seu
acerto clínico e benefício que pode fazer ao paciente dependerá de quanto ele
for capaz de perceber os significados que a vida, a doença, a figura do médico,
a saúde ou a integridade corporal. Como salienta Pessotti (1996), em um excelente
texto sobre a formação humanística do médico, o jovem que escolhe essa carreira
não é uma tabula rasa, uma folha em branco: ele tem uma motivação sua, pessoal,
para buscar essa profissão. Ele traz valores, que associou ao seu conceito de
Medicina, muito antes do ingresso no curso médico. Valores que adquiriu na sua
educação e na sua experiência pessoal pregressa. E que, ao longo do curso
médico, não estarão esquecidos ou extintos.
Swenson e
Rothstein (1996) referem que a formação em ética médica é imprescindível, e
deve decorrer da necessidade de que o médico tenha mais compaixão, e que se
formem médicos eticamente competentes. Os alunos de medicina devem compreender
os dilemas morais que moldam seu mundo, mas também aprender a responder a esses
dilemas. Por isso, cada vez mais educar o estudante de medicina é tentar
estimular suas possibilidades humanas, em uma atividade formativa abrangente,
que contemple a pessoa na sua totalidade, que mostre caminhos e promova
atitudes duradouras.
Claro que os
avanços científicos são uma coisa fabulosa, e devem ser valorizados na formação
médica, mas uma formação completa em equilíbrio com as exigências da vida
inclui também uma boa formação humanística. Então, essa é uma questão que deve
ser valorizada pelos professores e pelos próprios estudantes.
Publicações
recentes vem enfatizando a importância das humanidades da literatura na
educação médica (SHAH et al., 2008; GRAVES et al., 2002; PETTUS, 2002). Para
atender a chamada para a aplicação da espiritualidade na escola médica
currículo, a Escola de Medicina da University of Missouri - Kansas City (EUA)
incorporou o tema da espiritualidade como instrução para o terceiro ano médico.
O objetivo deste programa é expandir nos estudantes o conceito do paciente como
pessoa, incluindo dimensões das suas crenças espirituais e necessidades, além
de desenvolver nos alunos uma compreensão de como a crença espiritual afeta a
saúde dos pacientes. Os autores reconhecem que o aluno com crenças espirituais
têm um impacto positivo na sua prática da medicina (GRAVES et al., 2002).
Experiência nessa mesma linha pedagógica foi implementada em
outras ecolas médicas americanas. Como descreve Pettus (2002), a escola de
medicina de Massachussets (EUA) criou estratégias que incluem seminários com o
tema "Comunicando más notícias", que é baseado em uma interação
experiencial através de filmes sobre a difícil "arte" da partilha de
más notícias e muitas vezes traumáticas com os pacientes e seus familiares,
além de uma série de palestras mensais que analisa os diversos aspectos das
práticas religiosas e espirituais e as suas implicações em matéria de ciências
e saúde. São abordados pontos de vista religiosos a partir de uma perspectiva
judaico-cristão e as filosofias orientais, como budismo e hinduísmo, além da
discussão do efeito da diversidade cultural sobre o modo como as pessoas
compreendem e lidam com a doença.
Por outro
lado, os estudantes recebem uma abordagem global, baseada em evidências
currículo que engloba toda a literatura médica referentes à espiritualidade,
religião e saúde. O tema da terminalidade e cuidados paliativos e suas
implicações éticas também são abordados.
Contudo, há outro aspecto a ser salientado nessa questão: o aluno
de medicina, sobretudo no início da graduação, é um jovem e, portanto, está
vivenciando várias etapas de seu desenvolvimento como ser humano. Filósofos que
estudam desenvolvimento moral constatam que os indivíduos normalmente progridem
no início da idade adulta de uma fase em que se baseiam seu comportamento nas
normas e valores das pessoas à sua volta para mais uma fase em que se
identificam com esses princípios e tentar viver de acordo com seus valores
morais pessoais. Branch (2000) reporta dados que sugerem que muitos estudantes
de medicina, que deveriam estar nesta transição desenvolvimental, mostram pouca
mudança moral. Possivelmente, essa percepção está relacionada com pressões para
se conformarem com o pragmatismo da área médica.
Muitos
estudantes experimentam, segundo este autor, consideráveis conflitos internos,
uma vez que lutariam para acomodar valores pessoais relacionados com a empatia,
cuidado e compaixão com seu treinamento clínico. Intervenções educativas que
influenciem positivamente este processo poderiam estabelecer oportunidades para
a reflexão crítica pelos alunos em pequenos grupos. O referido autor considera
que esta "crise desenvolvimental do estudante de medicina" merece que
ele seja oriantado e que isso inclui muito mais do que incentivá-los a pensar
sobre dilemas éticos, mas que vivenciem as situações na própria prática
clínica.
O autor a
que recorremos (BRANCH, 2000) continua, afirmando que a escola de medicina
deveria promover o desenvolvimento moral dos seus alunos. Medicina, afinal, é
uma profissão moral. Isso é complicado também porque os alunos podem estar
individualmente em diferentes níveis de desenvolvimento e podem responder de
forma diferente aos desafios colocados pelo início trabalho clínico. Alguns
podem continuar a sua formação moral sem problemas, apesar de todas as adversidades.
Outros, com
diferentes níveis de conforto, podem aceitar a moralidade convencional dos que
os rodeiam. Alguns irão expressar pouco interesse em participar de atividades
educacionais que incidem sobre valores pessoais e de ética médica. Estes alunos
podem ser aqueles que têm maior necessidade de ações educativas que possam
crira condições para que questionem os seus pressupostos. Além disso, o
desconforto manifestado por muitos alunos quando começam a ser socializados em
papéis clínicos é provavelmente um bom. Isso pode indicar que esses alunos
estão lutando para manter os seus valores morais vivo.
O processo educativo deve criar as oportunidades onde eles também
possam aprender uns com os outros. Devem também aprender com os professores,
que podem servir de exemplo, ajudar a esclarecer os alunos "os princípios
morais”, assim como promover normas para o grupo em que o compromisso com os
valores morais do pessoal seja praticado. Vários aspectos da educação médica,
em conjunto, podem criar um clima educativo que influencie positivamente o
desenvolvimento moral do estudante de medicina. Isso poderia ser feito através
de reflexão crítica em pequenos grupos de estudantes e professores, juntamente
com um feedback dado pelos professores nas enfermarias.
A formação
humanística não equivale, portanto, somente ao conhecimento das doutrinas da
Filosofia ou das Ciências do Homem a respeito da natureza humana. Ela implica
tal conhecimento, mais ou menos amplo, e principalmente a capacidade de
enxergar e de entender o paciente-pessoa, o paciente com seus valores
(PESSOTTI, 1996).
Referências
BAZZO, W. A. Ciência,
tecnologia e sociedade e o contexto da educação tecnológica. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1998.
BRANCH,
W. T. Jr. Supporting the moral development of medical students. J
Gen Intern Med. 15
(7):503-8, 2000.
CHERVEL,
A.; COMPERE, M. As humanidades no ensino. Educ. Pesqui. v. 25, n. 2 p. 149-170, 1999.
SHAH,
S.; ROYDHOUSE, J.K.; SAWIER, S.M. Medical students go back to school--the
Triple A journey. Aust Fam Physician. 37
(11): 952-4, 2008.
GRAVES,
D.L.; SHUE, C.K.; ARNOLD, L. The role of spirituality in patient care:
incorporating spirituality training into medical school curriculum. Acad Med. 77 (11):
1167, 2002
LINSINGEN, I. Novos
modelos de produção e a formação do engenheiro: uma abordagem
CTS. Disponível em: <http://www.emc.ufsc.br/nepet/Artigos/Texto/Mod_Prod.htm>
Acesso em 04 jan 2009
PAVIANI, J.; DAL RI JUNIOR, A. Globalização
e Humanismo Latino. Porto Alegre: Edipucrs, 2000
PESSOTTI, I. A formação humanística
do médico. Medicina, Ribeirão Preto, 29: 440-448 1996
PETTUS,
M. C. Implementing a medicine-spirituality curriculum in a community-based
internal medicine residency program. Acad Med. 77(7):745,
2002.
SARTOR, V. V. D. B. Humanismo
e dos compromissos intergeracionais: Repensando as Organizações: da
Formação à Participação. Florianópolis:
Editora Fundação Boiteux, 2004
SWENSON,
S.L.; ROTHSTEIN, J. A. Navigating the wards: teaching medical studentes to use
their moral compasses. Acad Med 71(6):591-4, 1996 Crédito: Foto da postagem extraída de: http://www.human-inquiry.com/hummed.htm