28 de fevereiro de 2009

A vivência hospitalar nos deixa mais insensíveis?




A atuação médica é movida principalmente por dois grandes princípios morais: a preservação da vida e o alívio do sofrimento.
O estudante de medicina, dentro da sua formação, vai aprendendo a se comprometer com a vida. Toda a sua capacitação é voltada para a cura. E quando geralmente a morte se apresenta na prática hospitalar traz muita frustração e sentimento de impotência, pois existe um despreparo para lidar com este evento irreversível.
No hospital, no ensino chamado de "hospitalocêntrico", o problema do distanciamento do universo do doente por parte dos médicos e estudantes de medicina é mais crucial. Os currículos das Escolas de Medicina, centrados no hospital, são mencionados como um fator importante para a manutenção do modelo biomédico baseado na racionalidade técnica, e esse modelo, por sua vez, é responsabilizado pela chamada "desumanização" da Medicina, por parte de outros profissionais da área de Saúde e de intelectuais na área de Ciências Humanas.
Contudo, a tendência atual é que o ensino médico deixe de ser apenas racional e científico. As reformas curriculares apontam nesta direção. Assim, com uma formação humanística mais valorizada, o estudante de medicina deve aprender a acompanhar o paciente terminal e sua família. É preciso menos distância do estudante em relação a este cenário. Infelizmente, quando se fala de morte para o estudante de medicina, abordam-se ainda apenas conceitos biológicos, mecânicos e materialistas, esquecendo-se da concepção filosófica, cultural e social. Se não é proporcionada aos alunos de graduação em Medicina uma preparação para a morte dos pacientes, como fazem eles para enfrentar essa realidade? Tornam-se insensíveis para enfrentar mais facilmente a situação? O que sente um estudante de medicina diante da morte de um paciente que vem acompanhando?
Minha primeira vivência com a morte de um paciente foi no meu sexto período de graduação. Hoje aquele é o doente que mais lembro quando penso sobre a questão da morte de um paciente jovem. Era um paciente de cerca de 24 anos, portador de insuficiência valvar grave. Era proveniente do Sertão da Paraíba e nenhum familiar o acompanhava. Eu o visitava diariamente como estudante de medicina, sob orientação de meu professor, um grande clínico na cidade de Campina Grande. Este nosso paciente deveria ser submetido a uma cirurgia cardíaca em Recife, e faltavam poucos dias para que fosse transferido. Parecia compensado clinicamente, na medida do possível, pois sua lesão era gravíssima. Em um domingo em que fui visitá-lo, não estava mais lá em seu leito. Havia morrido à noite, de edema pulmonar agudo. E estava só, sem nenhum parente, nenhum conhecido, nenhum amigo.
Senti um misto de frustração, compaixão, mas também de culpa. Será que não poderia ter sido agilizada sua transferência para o outro hospital? Será que faltou fazer algo importante por aquele paciente? "O que eu estava fazendo ali?". Não tinha sido preparada para enfrentar a morte de um paciente ainda. Era muito jovem ainda para entender a necessidade de aceitar a idéia da morte de um doente.
Vários anos depois, já no segundo ano de Residência em Clínica Médica, no Hospital Universitário Lauro Wanderley, e após dois anos de residência médica em Pediatria, vivendo literalmente dentro de um hospital, acompanhei um paciente com um problema semelhante ao do doente do caso que relatei acima. Ele era jovem também e tinha uma valvulopatia, já com valva protética inserida, e estava em tratamento para endocardite infecciosa. Porém reagi de forma diversa diante de sua perda, embora este paciente tenha me lembrado aquele primeiro doente em estado grave que acompanhei quando estudante de Medicina, e apesar de ter maior responsabilidade sobre sua conduta clínica, já após na pós-graduação nesse momento.
Será que a vivência hospitalar nos torna mais insensíveis? Ou o amadurecimento e o entendimento facilitam o enfrentamento da situação, tornando as coisas menos complicadas? Nesse sentido, não há dúvidas de que é preciso passar por todo um processo de aprendizagem neste cenário. O tempo pode nos fazer aprender a lidar com os desafios e limites da profissão.
As pesquisas nesta área sugerem que durante o treinamento médico ocorre uma diminuição nas habilidades éticas e humanísticas dos estudantes (CRANDALL et al., 1993; SHORR et al., 1994), e especialmente mostram que há uma diminuição na sensibilidade ética (HEBERT et al., 1992). Por outro lado, no Brasil, Silva et al. (2005) observaram um aumento na sensibilidade ética, contrariando os dados da literatura internacional sobre este aspecto. Saiyd et al. (2005) chamam este fenômenro, verificado em médicos, de “calosidade emocional”, enquanto Meleiro (1999) denominou-o de “armadura profissional”. Tais comportamentos ajudariam os médicos a manterem essa imagem de “distanciamento emocional” (QUINTANA; ARPINI, 2002).
Há dados de pesquisa atuais que sugerem esse aspecto de distanciamento emocional do médico em relação ao sofrimento do doente. que o cuidado de pacientes que morrem em meio hospitalar é insuficiente e de má qualidade. Vários estudos têm mostrado que o atendimento terminal no hospital é deficiente no que diz respeito à melhora de sintomas físicos e à capacidade de abordar as necessidades emocionais e psicossocial dos pacientes. Em um estudo observacional em que foram observados 50 pacientes ditos terminais, observou-se que eles receberam apenas uma mínima atenção, tanto por parte dos médicos quanto da enfermagem (MILLS et al., 1994). Neste estudo, demonstrou-se que os sintomas físicos dos pacientes terminais estavam inadequadamente controlados, e cuidados básicos de enfermagem foram muitas vezes omitidos. Outra evidência mostra que as pessoas que morrem no hospital muitas vezes tinham dor, dispnéia, agitação e outros sintomas que são difíceis de controlar, e que, embora o paciente desejasse cuidados de conforto, muitos continuaram a receber tratamentos agressivos para sustentar vida até à sua morte (LYNN et al., 1997).
Voltando ao questionamento sobre o impacto que tem o estudante de medicina diante de determinados fatos da prática hospitalar, é importante salientar que a vivência emocional deste impacto é necessária. O impacto que sofremos ao nos depararmos com situações de vida e morte no início da carreira de Medicina é necessário para vencermos essa tenacidade que muitos profissionais de saúde possuem de que o que interessa é a vida, é curar a qualquer custo. A maioria dos estudantes de Medicina entra na faculdade motivada por uma idéia onipotente de Medicina retirada de fatos heróicos vistos na TV, cinema ou literatura, em que não há limites para a atuação médica. Raramente se ouve que entram na Medicina para "aliviar o sofrimento, consolar um doente e sua família".
De acordo com Caixeta (2005), essa onipotência quase nunca é quebrada durante o curso de graduação, assim como não é estimulado o lado hipocrático humanista e solidário que virá a ser a base da maioria dos procedimentos médicos. Tal desejo aparentemente humanista de "salvar vidas" esconde apenas onipotência, na maioria das vezes perigosa, porque é revestida por uma espécie de "obsessividade", que visa não exatamente ao bem-estar do paciente, mas sim ao preenchimento de um "ideal de ego", o ideal de ter sucesso sempre.
Assim, considero finalmente, a título de conclusão desta postagem, que a vivência hospitalar não nos torna insensíveis, mas as experiências que vivemos nesse contexto de dor e sofrimento vão nos fazendo amadurecer e conhecer nossos limites. E devemos passar a compreender a noção de que, embora se faça tudo que é possível para salvar um doente, nem sempre teremos sucesso.

Referências
CAIXETA, M. Psicologia Médica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005, cap. 57.
CRANDALL, S.J. S., VOLK, R.J.; LOEMKER, V. Attitudes of medical students toward providing care for the underserved. J Am Med Assoc. 269 (9): 2519-23, 1993.
HEBERT, P.C.; MESLIN, E.; DUNN, S.R. Measuring the ethical sensitivity of medical students: a study at the University of Toronto. J Med Ethics. 18 (6): 142-7, 1992.
LYNN, J.; TENO, J.; PHILLIPS, R. Perceptions by family members of the dying experience of older and seriously ill patients; SUPPORT Investigators Study to Understand Prognoses and Preferences for Outcomes and Risks of Treatments. Ann Intern Med, 126: 97-106, 1997
MILLS, M.; DAVIES, H., MACRAE, W. Care of dying patients in hospital. BMJ 309: 583-6, 1994 .
QUINTANA, Alberto M. & ARPINI, Dorian M. A atitude diante da morte e seu efeito no profissional de saúde: Uma lacuna da formação? Revista Psicologia Argumento, 19 (30): 45-50, 2002.
SHORR, F.; HAYES, R.P.; FINNERTY, J.F. The effect of a class in medical ethics on fist year medical students. Acad Med. 69 (12): 998-1000, 1994.
SILVA, J. T. N. et al. Medida da Sensibilidade Ética em estudantes da Medicina: um Estudo na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Rev Bras Educ Méd, 29 (2): 103-109, 2005 

Imagem: a foto da postagem foi extraída de http://www.ccctg.ca/publications_abstracts.php

20 de fevereiro de 2009

SEMIOQUIZ: Desafio Semiológico

O que este traçado eletrocardiográfico mostra?
a) Padrão QS e supradesnivelamento do segmento ST em V1-V3: sugere diagnóstico de infarto agudo anteroseptal???
b) Achados típicos de hipertrofia ventricular esquerda, sem infarto???
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PÓS-Postagem em 28.02.09
Alternativa (b). Os achados eletrocardiográficos são de hipertrofia ventricular esquerda.
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19 de fevereiro de 2009

Breve Revisão Etiológica sobre Amaurose

Por Charles Saraiva Gadelha
Estudante do quarto período do Curso de Medicina / Centro de Ciências Médicas / Universidade Federal da Paraíba 


O termo amaurose refere-se à cegueira, especialmente à perda da visão não relacionada a um erro de refração ou outra afecção do próprio olho. A amaurose fugaz é um ataque isquêmico transitório da retina, resultando em perda da visão monocular transitória; geralmente devido a embolismo das artérias da retina. A perda da visão poderá desenvolver-se de forma súbita (em 12 horas), rápida (até 2-3 dias), lenta (superior a 3 dias) ou progressiva (em meses ou anos). 

Classificação da amaurose quanto ao modo de evolução: 
- Aguda e dolorosa: úlcera de córnea; uveíte; glaucoma agudo; endoftalmia. 
- Aguda e indolor: hemorragia vítrea; deslocamento de retina; oclusão arterial ou venosa da retina; degeneração macular exsudativa; neurite óptica; infarto cerebral; funcional. 
- Crônica: erros de refração; catarata; glaucoma de ângulo aberto; degeneração macular atrófica; tumor cerebral. 
- Monocular e transitória: tromboembolismo (aterosclerose, êmbolos cardíacos); vasoespasmo (enxaqueca, crise hipertensiva); vasculites (arterite temporal). 

Causas não-neurológicas de amaurose 
· Córnea: trauma, infecção, hipercalcemia 
· Câmara anterior: glaucoma 
· Cristalino: catarata, subluxação do cristalino. 
· Humor vítreo: hemorragia, amiloidose 
· Íris/corpo ciliar: uveíte por citomegalovírus, toxoplasmose, linfoma.

Causas neurológicas de amaurose
a) Lesões da retina 

· Lesão isquêmica da retina: oclusão de artéria central da retina; oclusão de veia central da retina 
· Deslocamento de retina 
· Degeneração macular 
· Infecção (AIDS, toxoplasmose, sífilis) 
· Retinopatia diabética.
Aspectos do diagnóstico diferencial das perdas de visão por lesões da retina
- A oclusão da artéria central da retina (ou seus ramos) causa perda súbita da visão devido à oclusão por êmbolos ou trombos (pode estar associada a doença da carótida ou doença vascular cardíaca); a oclusão das arteríolas pré-capilares associa-se, por exemplo, a retinopatia diabética, retinopatia hipertensiva, leucemia e AIDS. 
- A oclusão da veia central da retina geralmente é unilateral, frequentemente idiopática, mas hipertensão, diabetes e glaucoma são fatores de risco proeminentes; policitemia, trombocitopenia e outros estados de hipercoagulabilidade devem ser corrigidos. 
- O deslocamento de retina geralmente ocorre em indivíduos com miopia ou após cirurgia ou trauma no olho; o início pode ser precedido por sintomas como flashes ou fotopsias. 
- A degeneração macular relacionada à idade ocorre em idosos (acima de 60 anos), e está associada com metamorfopsias; a fase exsudativa, que corresponde a 10% dos pacientes, causa complicações responsáveis por 90% dos casos de perda de visão grave.
b) Lesão do nervo óptico
· Desmielinização (neurite óptica): esclerose múltipla; neurorretinite viral e pós-infecciosa. 
· Isquemia: arteriosclerótica; arterite temporal; arterite sifilítica; para-infecciosa; trombose de seio cavernoso; infecção dos seios paranasais 
· Drogas e toxinas: metanol, etambutol, cloroquina, estreptomicina, cloranfenicol, clorpropamida. 
· Carenciais: deficiência de vitamina B12; deficiência de tiamina (“ambliopia tabaco-álcool”); tipos nutricionais epidêmicos 
· Doenças hereditárias e do desenvolvimento: atrofia óptica juvenil dominante; atrofia óptica de Leber; falha no desenvolvimento do disco óptico; lesões compressivas e infiltrativas; metástases no nervo óptico; glioma de nervo óptico; tumor de hipófise; oftalmopatia da tireóide; sarcoidose; linfoma; granulomatose de Wegener 
· Outras: lesão do nervo óptico induzida por radiação; papiledema.
Aspectos do diagnóstico diferencial da amaurose por lesão do nervo óptico 
- A neurite óptica causa prejuízo agudo da visão unilateral ou bilateral (simultâneo ou não), e dor aos movimentos oculares pode estar presente; a causa mais comum de neurite unilateral é esclerose múltipla (aproximadamente metade dos pacientes desenvolverá outros sintomas de esclerose múltipla em 5 anos); em geral acomete adultos jovens, tipicamente inicia com escotoma central e tem progressão subaguda, ocorrendo, em geral, uma remissão espontânea em duas a oito semanas, mas com alto índice de recidiva. 
- A neuropatia óptica isquêmica anterior ocorre em pessoas acima de 50 anos, sendo a causa mais comum de perda de visão monocular persistente; tem início abrupto e indolor e o outro olho é acometido em aproximadamente um terço dos pacientes, sobretudo naqueles com hipertensão e diabete melito; a forma mais comum é a não-arterítica (angioesclerótica). 
- As neuropatias ópticas tóxicas e nutricionais evoluem com perda da visão simultânea, bilateral e lenta com escotomas centrais é causada geralmente por causas tóxicas ou nutricionais; neste último caso, com tratamento precoce, as alterações visuais são reversíveis. - As neuropatias ópticas hereditárias são geralmente bilaterais. - Outras causas de neuropatia do nervo óptico cursam com papiledema de longa duração de qualquer causa pode levar a atrofia do nervo óptico e cegueira.
c) Lesão quiasma e pós-quiasma 
· Lesão do quiasma óptico 
· Lesões do trato óptico
· Lesões das radiações ópticas 
· Lesões do córtex cerebral
Aspectos do diagnóstico diferencial de amaurose por lesão quiasmática:
- Quiasma óptico: a causa mais comum é o adenoma de hipófise. 
- Pós-quiasma: as lesões vasculares no território da artéria cerebral posterior são responsáveis por 90% das hemianopsias homônimas isoladas; outras causas são enxaqueca, trauma e tumores primários ou metastáticos.

Referências
ROSA, A. A. A.; SOARES, J. L. M.; BARROS, E. Sintomas e sinais na prática clínica: consulta rápida. Porto Alegre: Artmed, 2006. 
MACHADO, A. Neuroanatomia Funcional. São Paulo: Atheneu, 2006. 

Imagem: a foto desta postagem foi extraída de http://flickr.com/photos/22221054@N00/14870159

18 de fevereiro de 2009

"Mapa clínico" das enfermarias como ferramenta didática de Semiologia Médica


A importância da Semiologia na formação do médico é ressaltada nas novas Diretrizes Curriculares da Graduação em Medicina, no que concerne ao aprendizado de técnicas de exame clínico:

- Art 4, § V: Realizar com proficiência a anamnese e a consequente construção da história clínica, bem como dominar a arte e a técnica do exame físico (Resolução CNE/CES Nº 4, de 7 de novembro de 2001).

É importante ressaltar também que forma mais eficaz de ensinar semiologia aos alunos é através da realização dos exames clínicos nas enfermarias, o que já era preconizado por William Osler, muito tempo atrás, quando ele dizia que não seria ensino médico sem o paciente, e que o melhor ensino é aquele ensinado pelo próprio paciente, enfatizando a importância do ensino da Semiologia à beira do leito.

Justifica-se, portanto, a constante busca de abordagens didáticas que favoreçam o aluno e o paciente na prática pedagógica da Semiologia. E foi desta preocupação que surgiu a idéia de melhor organizar a ação pedagógica cotidiana na nossa disciplina.

Desde o ano de 2003, a monitoria de Semiologia Médica (Medicina / CCM / UFPB) tem-se mostrado essencial na inserção do aluno iniciante na prática didática no contexto hospitalar, porque é a primeira fase em que o aluno vai ter contato direto com o paciente e necessita de alguém que o ajude inicialmente nesta abordagem. Atualmente, também é atribuição dos monitores melhorar a sistemática de inclusão dos pacientes internados nas aulas práticas da disciplina.

Anteriormente, era preciso ir até a enfermaria localizar os pacientes em condições de participar das aulas práticas, o que era feito quase na hora da aula e dava margem a imprevistos. Então tornou-se necessário aperfeiçoar esse procedimento, o que nos fez buscar uma nova forma de organização das aulas práticas e que resultou neste relato de nossa experiência.

O objetivo desta postagem é descrever a experiência didática realizada nas atividades da monitoria de Semiologia, através da elaboração do mapa clínico das enfermarias como ferramenta didática no planejamento das aulas práticas. Trata-se de uma experiência em vigência no projeto de nossa monitoria, realizado junto aos pacientes internados nas enfermarias de clínica médica do nosso hospital-escola.

A coleta de informações é feita através de um formulário que é preenchido de acordo com os achados encontrados nos prontuários, os quais são confirmados pela realização do exame físico dos pacientes pelos monitores. O procedimento tem o objetivo de avaliar os achados semiológicos presentes e o estado clínico dos pacientes e determinar se o paciente tem condição de participar das aulas práticas e se concorda em participar. O formulário é composto pelos seguintes itens: diagnóstico principal, estado clínico, aceitação em participar das aulas práticas, dados relacionados à história clínica do paciente e achados semiológicos objetivos.

Na disciplina, há oito monitores, e este grupo é dividido em quatro duplas com a tarefa de acompanhar a rotatividade de 70 leitos da enfermaria de clínica médica. Após a coleta de dados, os achados semiológicos mais relevantes são transferidos para uma planilha eletrônica (figura acima) acessível a todos os professores e monitores da disciplina.

Essa planilha é atualizada a cada três dias pelos monitores que, após cada visita à enfermaria, acrescenta um dado novo ou exclui algum dado que, por ventura, não exista mais. Aqui está um modelo da planilha, onde na primeira linha de cada coluna está cada parte do exame físico (ectoscopia, cabeça e pescoço, respiratório, cardiovascular e abdome), onde os monitores vão preenchendo com os respectivos achados encontrados pelos monitores. Pressionando sobre cada achado na tela, abre-se uma janela onde aparece a identificação do paciente, o número de seu leito, e a descrição do achado semiológico registrado.

Os resultados preliminares desse projeto que está em execução já permitem verificar maior praticidade nas aulas de treinamento dos alunos, quanto à indicação dos pacientes a serem examinados durante a aula e, assim, tornou mais ilustrativas as práticas de demonstração de semiotécnica e exame físico.

Um outro aspecto positivo foi em relação à maior facilidade do trabalho dos professores da disciplina que, agora, podem saber com antecedência quais os pacientes que aceitam participar das práticas, o que facilitou seu trabalho de demonstração da semiotécnica para os alunos. Além disso, o que é mais importante, aqueles pacientes que não estão em condição clínica ou psicológica, ou que preferem não participar, não são perturbados desnecessariamente.

Por outro lado, o projeto também tem contribuído para a aproximação dos monitores em relação aos pacientes, assim como a melhora da relação aluno-paciente. Em suma, melhoraram o planejamento das aulas pelos professores, o treinamento dos monitores, o conforto dos pacientes e o aprendizado dos alunos da disciplina.

O presente projeto, que passamos a chamar de “Mapeamento Clínico” tem representado uma iniciativa prática importante do transcorrer da disciplina de Semiologia, oferecendo vários benefícios para o funcionamento didático dela.

Este é um projeto em andamento, e pretendemos aperfeiçoá-lo, a fim de contribuir com o ensino dos alunos de smeiologia e desenvolvimento dos monitores. Assim, a grande quantidade de atividades cotidianas da disciplina, podem ser realizadas com mais eficiência através de medidas simples delegadas aos monitores, no sentido de melhorar a prática de ensino de Semiologia Médica.

15 de fevereiro de 2009

II Seminário Didático de MCO2: Relatório

Artigo discutido no Seminário de MCO2 2008.2 hoje:
AVEZUM, A.; PIEGAS, L. S.; PEREIRA, J. C. R. Fatores de risco associados com infarto agudo do miocárdio na região metropolitana de São Paulo. Uma região desenvolvida em um país em desenvolvimento. Arq Bras Cardiol, 84: 206-213, 2005.
Relatório do II Seminário

Preâmbulo: O estudo é um trabalho original que aborda tema relevante em Medicina. O trabalho contém introdução que situa adequadamente o leitor em relação ao tema desenvolvido. Trata-se de um estudo caso-controle com estrutura e recursos teóricos e metodológicos adequados. Contudo, alguns aspectos desse artigo original foram analisados durante a discussão no seminário de hoje pelos alunos de MCO2 / 2008.2. Os aspectos considerados serão apresentados abaixo.

- No título, verificou-se que não havia necessidade do subtítulo: "Uma região desenvolvida em um país em desenvolvimento". Este subtítulo não acrescentou nada ao título, e tornou-o longo.
- Quanto aos descritores do artigo, os alunos verificaram que não havia indexação da palavra-chave "infarto agudo do miocárdio", e sim "infarto do miocárdio" nos termos de indexação da DeCS (Descritores em Ciências da Saúde) da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) para uso em pesquisas e recuperação de assuntos da literatura científica nas bases de dados MEDLINE, Scielo, Lilacs e outras. O mesmo ocorreu com o descritor "estudo de caso-controle". Apenas a palavra-chave "fatores de risco" usada no artigo está incluída no DeCS como unitermo original. A escolha de descritores originais indexados contribui para o acesso universal às fontes de informação em saúde mediante o desenvolvimento de terminologia atualizada para a promoção do uso intensivo de fontes de informação cientifico-técnica em saúde pública.
- Os objetivos estão claramente definidos. Há adequação entre os objetivos propostos e os procedimentos utilizados. Porém não há estudo perfeito e todo e qualquer estudo apresenta limitações. Este aspecto tem uma função didática nas disciplinas de Metodologia da Pesquisa, pois induz o aluno a analisar o trabalho em busca de suas forças e fraquezas, com o objetivo fundamental da aprendizagem científica.
- O problema e a pergunta da investigação não estão claramente definidos, mas durante a discussão do artigo no seminário, deduziu-se o seguinte problema de pesquisa: Os fatores de risco para infarto do miocárdio na Região Metropolitana de São Paulo são semelhantes aos descritos convencionalmente em estudos realizados em outros países? - Observou-se que não houve completa adequação entre procedimentos utilizados e os resultados, assim como entre os resultados e a discussão apresentada. - Classifica-se o tipo de pesquisa (caso-controle, multicêntrica), mas a tipificação como prospectiva é inadequada, pois caracteristicamente o estudo-caso-controle é retrospectivo, e a maioria das variáveis são coletadas retrospectivamente. - Os conceitos, categorias e/ou temas principais estão definidos explicitamente no trabalho, mas não são sustentados pela bibliografia apresentada. Faltam referências para fundamentação de muitos aspectos importantes: o critério para definir os casos (supradesnivelamente de ST, a base de cálculo do tamanho da amostra considerando uma razão de chance de 2,0, dados controversos apresentados na discussão). - O critério para definição de infarto do miocárdio foi o supradesnivelamento do segmento ST, mas este não é um achado específico, e pode resultar de outras doenças agudas e crônicas, como hipertrofia do ventrículo esquerdo com alteração de repolarização, angina de Prinzmetal, pericardite aguda e tromboembolismo pulmonar. Como critério associado, poderia ter sido mencionado o eletrocardiograma (ECG) seriado ou a combinação de ECG (supra-ST) com elevação de enzimas. - Identificam-se os locais do estudo, mas não é relatado o período de realização da pesquisa. - Não há menção de que havia um formulário para dados sócio-demográficos ou clínicos para a coleta de dados. - Os critérios de escolha dos participantes foram apresentados. Porém os serviços ou instituições estudados não tiveram os critérios de escolha apresentados claramente.
- Também não é mencionado um controle de qualidade das análises de laboratório realizadas nos diferentes laboratórios dos diversos hospitais, tampouco é realizada uma avaliação de variabilidade interobservador e intra-observador em relação ás análises laboratoriais. - Na tábela 1, verifica-se que há diferenças entre as mensurações das variáveis de pacientes dos grupo de casos e do grupo de controles. Por exemplo, a média de idade no grupo de casos foi de 58,00, enquanto no grupod e controles foi de 47,00, o HDL-colesterol no primeiro foi de 36,20, e no controle foi 42,36; o LDL-colesterol foi de 130,79 nos casos e de 123,52 nos controles e a licose foi de 130,58 nos casos e d e 104,31 nos controles, e assim por diante. No entanto, não foi aplicado um teste estatístico para comparar estas médias entre os grupos comparados e determinar se eram homogêneas entre-grupos, ou seja, que não diferiam significativamente do ponto de vista estatístico. Poderia ter sido feito um pareamento, que é um procedimento relativamente simples para tornar os casos e os controles comparáveis em fatores importantes. - Há evidente redundância entre o conteúdo da tabela 2 e o da figura 1, com repetição dos mesmos dados. - Vieses na medição das variáveis são frequentes eme studos caso-controle, pelo seu caráter retrospectivo. Então poder-se-ia ter realizado o cegamento tanto dos participantes em relação aos fatores de exposição em estudo e nos observadores (em relação ao status do desfecho e fatores de exposição). - Verifica-se que houve diferenças substanciais em relação ao número de casos e controles na maioria dos hospitais participantes do estudo, como pode ser visto no anexo do artigo. - A discussão não está completamente fundamentada nos dados apresentados pelos autores na seção de Resultados, pois não são demonstrados os resultados em relação à associação entre a variável dependente infarto do miocárdio com idade, sexo, estado civil, por exemplo. - Repete-se várias vezes na discussão que não houve poder estatístico suficiente para detectar no estudo algumas diferenças esperadas pela plausibilidade biológica, como renda familiar e escolaridade com maior risco de infarto. [Nesse sentido, renda familiar e escolaridade não foram mencionados na apresentação dos resultados]. O mesmo aconteceu com a comparação de risco entre grupos étnicos. No que concerne à falta de poder estatístico, foram apresnetados na seção de métodos os parâmetros para cálculo da amostra, e o poder estatístico adotado na fórmula foi de 90%, bastante elevado, considerando que o habitual é de 80%. Portanto, esse aspecto não deveria ter sido utilizado como explicação para a falta de associação entre as variáveis independentes e o risco de infarto. - A estratégia utilizada para a análise estatística dos dados foi claramente definida e adequada aos objetivos do estudo: medida de associação de risco (odds ratio) e análise de regressão múltipla.
- Não se apresentaram com clareza as conclusões no texto, embora estejam explícitas no resumo do artigo (“Tabagismo, relação cintura-quadril, antecedentes de hipertensão arterial e de diabetes, história familiar de insuficiência coronariana, níveis séricos de LDL-colesterol e de HDL-colesterol encontram-se independentemente associados com IAM na região metropolitana de São Paulo”). Mas não há um parágrafo final na seção de Discussão onde fique explícita esta conclusão; menciona-se apenas que esses fatores foram detectados com suas respectivas forças de associação. No fim da discussão, apresenta-se a contribuição decorrente do trabalhos no sentido de que ações preventivas de saúde cardiovascular poderiam ser hierarquizadas a partir dos resultados do trabalho. - O texto está bem estruturado, é claro na sua maior parte e oferece ao leitor elementos suficientes para sua compreensão, porém há pontos discutíveis. Todas as abreviações não foram apresentadas por extenso na sua primeira aparição no texto e persistem assim, tais como ECF e HAS. As abreviaturas IMC e RCQ só são apresentadas por extenso nas tabelas, mas não no texto.
- O estudo respeita as normas da ética da pesquisa com seres humanos, pelo relato de que a pesquisa foi aprovada pelos comitês de ética dos hospitais participantes, mas não há menção de que todos os participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido.
- A revisão bibliográfica apresentada não é atualizada, havendo apenas referências publicadas entre 1970 e 1998, enquanto o artigo em apreciação foi publicado em 2005.
- Os mesmos autores deste artigo haviam publicado uma pesquisa envolvendo 2.558 participantes arrolados em várias cidades do Brasil, com os mesmos objetivos da pesquisa de que trata o artigo em análise (PIEGAS et al., 2003). Neste estudo, os autores concluem que os fatores de risco independentes para IAM no Brasil tinham um padrão de distribuição convencional (tabagismo, diabetes mellitus e de obesidade central, entre outros) com diferentes mas com diferentes magnitudes de associação.

Referência PIEGAS, L. S. et al. Risk factors for myocardial infarction in Brazil. Am Heart J. 146 (2): 331-8, 2003

Nota de esclarecimento: Os artigos analisados nesta e outras postagens deste blog fazem parte da programação prática de nosso Módulo de Pesquisa Aplicada à Medicina. Uma revisão crítica e justa é parte essencial do processo de publicação científica. Nesse sentido, não há implicações éticas nesse ato de publicação de resenhas críticas porque a revisão de trabalhos já publicados por pesquisadores por parte de seus pares deve ser considerada como instrumento pedagógico e de promoção da ética na Pesquisa. É o que ocorre nas seções de "Carta ao Editor", "Comentários de Leitores" de periódicos científicos. A diferença é que neste caso, trata-se de um veículo informal de comunicação. Nesse sentido, entretanto, a literatura científica pode ser traduzida como a parte da comunicação expressa em veículos formais, isto é, livros, artigos de revistas especializadas etc, porém também de veículos informais válidos de comunicação. Tudo agora é passível de exame, de crítica, pois o conhecimento científico se sustenta pelo critério da racionalidade. A própria lógica da pesquisa científica o exige.

13 de fevereiro de 2009

SEMIOQUIZ: Desafio Semiológico

Este paciente de 67 anos foi atendido em um serviço de dermatologia de um hospital universitário com a queixa de que havia surgido uma coloração azul-acinzentado na face. À ectoscopia, observou-se hiperpigmentação azul-acinzentado na região frontal, bochechas, nariz, queixo e regiões malares (foto acima).
Ele encontrava-se assintomático.
A anamnese revelou que ele tinha diagnóstico de cardiomiopatia dilatada isquêmica há dois anos e apresentou episódio de síncope associada a taquicardia ventricular um ano antes. Resultados de exames laboratoriais de rotina foram normais. Uma biópsia de pele revelou resultado histopatológico normal, apenas com deposição perivascular de um pigmento marrom-amarelado na derme.
Copyleft: Referência e crédito da foto serão acrescentados oportunamente nesta postagem.
PÓS-Postagem em 28/02/09
O diagnóstico é hiperpigmentação induzida pela amiodarona.
Diversos efeitos colaterais sistêmicos e dermatológicos são atribuídos à amiodarona, tais como a fibrose pulmonar (que tem uma taxa de mortalidade de 10%), alterações da tireóide, hepatite fulminante, ceratite, ansiedade crônica, reação de fotosensibilidade e hiperpigmentação cutânea (2-5% dos usuários do fármaco). A pigmentação é clinicamente caracterizada por progressiva descoloração azul-acinzentada predominantemente nas áreas expostas ao sol. Esta hiperpigmentação está associada com depósitos de lipofuscina na pele. Lipofuscina é um pigmento amarelo-castanho, que se acumula nos lisossomos com o envelhecimento e é um subproduto da degradação celular. A patogênese da hiperpigmentação induzida por amiodarona pode estar relacionada com a ação da droga sobre os lisossomos e efeito fototóxico extra-lisossomal. A pigmentação cutânea lentamente desaparece após a suspensão da terapia, mas pode persistir por meses a anos.
Diagnóstico diferencial
O diagnóstico diferencial deve ser feito com líquen plano actínico, hemocromatose e argiria.
- Líquen plano actínico uma forma clínica rara de líquen plano, que ocorre em áreas expostas da pele. A variante pigmentada da doença tipicamente envolve apenas a face, com características clínicas semelhantes ao melasma.
- Hemocromatose é um dos mais comuns erros genéticos do metabolismo e é caracterizada por uma pigmentação cutânea difusa cinzenta em áreas expostas à luz. O início da doença ocorre geralmente durante a quarta ou quinta década de vida. Os homens são mais freqüentemente afetados do que as mulheres.
- Argiria ocorre em pessoas expostas a sais de prata e clinicamente, apresentando-se como uma pigmentação cinza em áreas da pele expostas ao sol, especialmente a testa e nariz.
Referência: Este relato de caso foi publicado originalmente na Am Fam Physician.
RUBEGNI, P. et al. Blue-gray centrofacial hyperpigmentation. Am Fam Physician. 63 (7): 1409-10, 2001. Os autores são do Instituto di Scienze Dermatologiche, Università degli Studi di Siena, Policlinico Le Scotte, Siena, Itália.

11 de fevereiro de 2009

Quadro clínico: uma pintura impressionista

"O que se denomina 'quadro clínico' não é apenas a fotografia de um homem doente no leito; é uma pintura impressionista do paciente circundado por sua família, seu trabalho, suas relações, suas alegrias, seus pesares, suas esperanças e seus medos"
(Francis Weld Peabody)
Imagem acima: Pintura "Ciência e Caridade" (1897), de Pablo Picasso.
Museu Picasso (Barcelona)

9 de fevereiro de 2009

I Seminário Didático de MCO2: Relatório da leitura crítica de um artigo

VILLAS BOAS, P. J. F.; RUIZ, T. Ocorrência de infecção hospitalar em idosos internados em hospital universitário. Rev. Saúde Pública, v. 38, n. 3, pp. 372-378, 2004.
Seminário Didático de Análise Crítica de Artigos Científicos
O artigo acima foi apresentado e discutido no seminário de hoje em MCO2. Encerrada a discussão, uma providência ex-post é a divulgação externa dos resultados e a contribuição dos participantes. Esta é uma parte importante em qualquer seminário.
O tema do artigo apresentado é relevante na atualidade: infecção hospitalar em idosos, e foi publicado em um periódico "Qualis A Nacional". Contudo, ao ler o trabalho com espírito crítico e aguçando a curiosidade na formulação de questões a cada seção do artigo, encontramos aspectos que devem ser comentados, sobretudo considerando que a finalidade é o aprendizado e o incentivo do raciocínio crítico dos estudantes. Esse objetivo didático é extremamente importante.
Os principais problemas do artigo situam-se nas seções de "Métodos" e "Resultados". O estilo de redação do trabalho também deve ser mencionado pela falta de clareza de muitas sentenças. Temos a impressão que palavras e frases não foram cuidadosamente organizadas e editadas.
A maior parte das observações deste relatório foi colhida na discussão com os alunos 2008.2 de MCO2. A participação da turma foi boa, com questionamentos e comentários bastante pertinentes sobre os aspectos metodológicos e estilísticos do trabalho. O resultado da análise do artigo, que foi a primeira do semestre e desta turma no curso de graduação em Medicina da UFPB, pode ser considerado muito bom, a par da fase incipiente em que ainda se encontra esta turma na sua formação acadêmica (segundo período), embora tenha a seu favor o cumprimento do primeiro módulo (MCO1), o Módulo I de Pesquisa Aplicada à Medicina, no semestre passado.
A participação verbal dos alunos foi relativamente homogênea, com iniciativas interessantes de quase todos eles em contribuir com a discussão. Houve interferência negativa pelo número de alunos sobre a dinâmica do seminário, sendo difícil de conduzí-lo, o que já era esperado, pois a turma é muito grande. Um seminário com uma turma desse tamanho é uma tarefa quase hercúlea.
Da nossa discussão, encontramos as seguintes falhas no artigo lido:
1) Título: "Ocorrência de infecção hospitalar em idosos internados em hospital universitário" tem duas falhas mais importantes; primeiro, "ocorrência" é uma palavra vaga e apenas alonga o título, sem nada contribuir na sua expressividade, e poderia ser removida ou substituída por "risco" ou mesmo "incidência"; segundo, "internados em hospital universitário" é tautológico, porque se é antecedido por "infecção hospitalar", é porque o paciente esta internado, e "em hospital universitário" soa também muito vago: por que não se definiu em que hospital foi realizado o estudo? A pesquisa foi feita em apenas um hospital.
2) Resumo: Há uma sentença inicial no item "objetivos" que não é adequada ali - se o resumo é estruturado, não se poderia iniciar este item com a frase "A infecção hospitalar é uma importante causa de morbidade e mortalidade na população idosa." A seguir, no resumo, há menção ao intervalo de confiança de 0,95%, e não de 95%, como deveria ser. No resumo, os autores referem-se à odds ratio como "o odds ratio", mas esta medica é uma razão, e não um coeficiente ou índice e, portanto, deveria ser "a odds ratio".
3) Introdução: No terceiro parágrafo, define-se infecção hospitalar de acordo com o Ministério da Saúde, porém não se insere a respectiva referência. O terceiro parágrafo é totalmente dissonante, nem deveria estar ali, e sim na "Discussão", onde também figura, sendo esta mais uma razão para a eliminação de todo este parágrafo da "Introdução". O quarto parágrafo dispensa comentários por sua redação confusa, e será transcrito a seguir: "Os determinantes de risco de infecção hospitalar estão entre as características e exposições dos pacientes que o predispõem às infecções. Os pacientes submetidos a esses fatores de risco apresentariam taxas mais elevadas de infecção hospitalar"
4) Objetivos: Neste item não figuram aspectos que foram incluídos nos resultados, tais como relação com mortalidade e permanência hospitalar, etiologia das infecções e uso de antimicrobianos. Mas poderia ser considerado um aspecto aceitável, se considerarmos que os autores optaram apenas pela inclusão do objetivo geral da pesquisa.
5) Métodos:
(5.1) Não há menção ao nome do hospital onde foi realizado o estudo, nem os setores deste que foram pesquisados, e nem à caracterização do serviço ou da instituição. Não havia necessidade de ocupar-se tanto espaço com a fórmula de cálculo do tamanho da amostra. Por outro lado, "a fórmula de Fisher e Belle" não existe enquanto "fórmula" de Fisher e Belle. Poderia ter sido feita a referência do livro onde se recomenda essa fórmula de cálculo, já que há várias fórmulas com este fim, dependendo do objetivo da pesquisa. No caso, é um estudo de incidência, e portanto, existe uma fórmula para tal, e não deveria ter sido mencionada como "fórmula de Fisher e Belle", só porque esta fórmula está explicitada em um conhecido livro de Metodologia e Bioestatística, dos autores Fisher e Van Belle, assim como é mencionada em outros livros de Estatística.
(5.2) No cálculo da amostra considera-se uma incidência de infecção hospitalar de 8,5%, mas não foi incluída a devida referência desta incidência.
(5.3) Não ficou explícito o modelo do estudo, que por dedução, o leitor conclui que é um estudo de coorte. Além disso, não foi descrito o número de avaliações/visitas feitas aos pacientes, já que é um estudo de seguimento.
(5.4) A avaliação pós-alta de incidência de infecção de sítio cirúrgico foi feita de forma pouco acurada, realizando-se apenas contato telefônico com os pacientes para verificar a ocorrência de infecção. Mais apropriado seria a visita domiciliar do pesquisados aos pacientes observados, ou a visita destes ao hospital, para observação pelo médico ou enfermeiro. Na vigilância após a alta hospitalar ainda não foi validado nenhum método e vários têm sido utilizados: método de busca ativa, notificação passiva pelo cirurgião ou pelo paciente, revisão de prontuários, avaliação de exames microbiológicos e revisão de bancos de dados de planos de saúde. Não se pode afirmar que um único método seja totalmente eficiente, mas é provável que a observação direta da ferida cirúrgica pelo médico, geralmente usada como "padrão ouro" na detecção das infecções de sítio cirúrgico, apresente maior sensibilidade e especificidade. Não se dispõe de muitos trabalhos que relatem o valor da sensibilidade dos diferentes tipos de coleta de dados utilizados. Nas experiências referidas por Hofherr (1979) e Thoburn (1968), a notificação dos médicos identificou 36% e 64% das infecções, respectivamente. Por outro lado, a busca ativa apresentou sensibilidade de 68,5% (BLAKE, 1980), 70% (BIRNBAUM, 1981) e 80% (MULHOLLAND, 1975), utilizando diversas fontes de dados.
(5.5) As variáveis independentes pesquisadas foram escolhidas de acordo com que trabalho prévio ou que autor (es)?
(5.6) A classificação do potencial de contaminação do tipo de cirurgia realizada não tem referência. Deveria ter. Além disso, na vigilância das infecções de sítio cirúrgico, utiliza-se o componente cirúrgico do sistema de vigilância das infecções hospitalares National Nosocomial Infections Surveillance (NNIS) do Centers for Disease Control and Prevention (CDC, Estados Unidos), no qual os pacientes devem ser acompanhados até o 30º dia do pós-operatório ou até um ano, se houver implante de prótese.
(5.7) Não há critérios de exclusão de pacientes da amostra selecionada. Deveria haver. É necessário saber que pacientes foram excluídos e por quê. Dos 760 idosos hospitalizados no hospital, foram selecionados 322. Quais foram os critérios adotados para esta seleção? Foi uma seleção aleatória?
(5.8) Os números da amostra estão discrepantes. Ora o número de pacientes é 322, ora é 332.
(5.9) A análise estatística foi bem apropriada ao desenho e objetivos do estudo. Em uma primeira etapa, utilizou-se uma medida de associação, a odds ratio, para verificar a existência de associações entre os fatores de risco analisados e o desfecho (infecção hospitalar); e na segunda etapa da análise inferencial, ajustou-se um modleo de regressão múltipla envolvendo as variáveis que, na análise bivariada da fase anterior (odds ratio) apresentaram um valor de p > 0.05.
6) Resultados:
(6.1) Esta seção deveria ter começado com a caracterização sócio-demográfica e clínica da amostra, que só foi feita no oitavo parágrafo. O primeiro parágrafo encontra-se confuso, e será transcrito a seguir: "A taxa de pacientes com infecção hospitalar nos pacientes estudados foi de 18,6% (61 pacientes de 332) e a taxa de infecção hospitalar nos pacientes estudados, de 23,6% (76 episódios em 332)."
(6.2) Há resultados que não foram mencionados na seção "Métodos": etiologia das infecções e uso de antimicrobianos. E há dados que foram incluídos em "Métodos" e não foram reportados, como a caracterização do diagnóstico principal de internação conforme a CID-10, e que não foram considerados nos "Resultados".
(6.3) De forma geral, as três tabelas têm títulos incompletos. Na terceira coluna da tabela 3 deveria ter sido colocado "odds ratio ajustada", pois foi associada à regressão múltipla.
7) Discussão: O primeiro parágrafo deveria estar na Introdução. As referências mencionadas são antigas, entre 1978 e 1998, com apenas duas referências de 2000 a 2003. Há vários trechos com falhas na redação. Há muita repetição dos dados apresentados em "resultados", inclusive com valores numéricos. Os resultados deveriam ser apenas salientados na discussão. Alguns aspectos importantes dos dados não foram discutidos, como a taxa de uso de antibioticoterapia profilática e sua relação com a incidência elevada de infecção hospitalar que foi encontrada na pesquisa.
Referências mencionadas neste relatório BIRNBAUM, D. e KING, L. A. Disadvantages of Infection Surveillance by Medical Record Chart Review. Am. J. Infect. Com. 9 (1): 15-7, 1981. BLAKE, S. et alii. Surveillance: Retrospective versus Prospective. Am. J. Infect. Cont. 8 (3): 75-8, 1980. HOFHERR, L. Nosocomial Infection Surveillance Techniques-a review. APIC Journal 7 (3): 12-5, 1979.

6 de fevereiro de 2009

Dispepsia: o remorso de um estômago culpado

Todo médico, seja qual for a área que siga, deveria estar preparado para atender inicialmente um paciente com condições muito prevalentes como gripe, cefaléia, lombalgia, obstipação ou dispepsia.
Os sintomas relacionados ao trato digestivo representam uma das queixas mais comuns na prática clínica diária, e entre eles, a dispepsia é considerada uma condição frequente. Esta queixa é responsável por centenas de milhões de dólares gastos em cada ano com antiácidos e antagonistas H2, e que ocupa o segundo lugar como causa mais frequente de perda de tempo de trabalho, perdendo apenas para a gripe, segundo Donaldson (1987). A prevalência de dispepsia é de 25-40% (OLIVEIRA, 2006).
É uma condição que geralmente denota coisas diferentes para pessoas diferentes, mas, por definição, a queixa de dispepsia deve ostentar uma relação com a ingestão de alimentos ou bebidas.
Dispepsia tem origem no grego dys (prefixo que indica dificuldade) e peptein (digerir).
Um autor referiu-se à dispepsia no Lancet há mais de 100 anos como "o remorso de um estômago culpado". De Quincey escreveu em 1823 que dispepsia "é a ruína da maior parte das coisas: impérios, expedições, e todo o resto." Isso pode ser um exagero. Ainda assim, dispepsia pode certamente ser o prenúncio de doenças sérias.
Tenho um velho artigo escrito sobre dispepsia há 30 anos, por Horrocks e De Dombal, que descreve a apresentação clínica de 360 pacientes que sofriam de "dispepsia" no momento da sua primeira visita a dois hospitais da Inglaterra (Yorkshire). As categorias de doença estudadas foram colecistite, úlcera duodenal, úlcera gástrica, câncer gástrico, e dispepsia funcional, com pelo menos 50 pacientes em cada categoria. Os resultados desta série contrastavam com o descrições dos "livros-texto". Os autores referiam que alguns eram contrastes bastante surpreendentes; por exemplo, a maioria dos 360 pacientes alegou que a sua dor não era agravada pela alimentação. Os autores então, sugeriram, que deveria haver uma razão para os diagnósticos errôneos em relação a esta queixa, e que provavelmente os clínicos não tinham dados suficientes no que dizia respeito à apresentação das várias doenças em causa, quando se tratava de dispepsia.
A definição de dispepsia tem evoluído ao longo do tempo. Atualmente, define-se como dor ou desconforto persistente ou recorrente nos quadrantes superiores do abdome e que podem ou não estar relacionados com as refeições. Na abordagem de um paciente com dispepsia se faz necessário uma anamnese minuciosa, embora algumas vezes de valor limitado na distinção das possíveis causas. Mas é extremamente importante para caracterizar a síndrome dispéptica.
Dispepsia é um sintoma e não uma doença. A síndrome dispéptica pode ser ocasionada por doenças orgânicas em que existe uma alteração estrutural ou orgânica como responsável pelo quadro, ou por doenças funcionais, em que fatores como anormalidades na motilidade gastrointestinal, hipersensibilidade visceral e alterações psicoemocionais estão implicadas etiopatogenicamente. É de suma importância excluir as causas estruturais da síndrome dispéptica antes de rotulá-la de dispepsia funcional, lembrando que neste caso trata-se de uma síndrome heterogênea, de conceito amplo e com um complexo variável de sintomas que se interpõem e mudam de intensidade e freqüência, dependendo de cada paciente.
Repetindo, para enfatizar a importância inconteste da semiologia: A história clínica fornece informações importantes para o diagnóstico e classificação dos distúrbios funcionais gastrointestinais. Quando bem colhida, por si só, revela informações essenciais para o diagnóstico - os achados físicos são normais, como também o são os estudos laboratoriais e de imagem. Assim, o diagnóstico dos distúrbios funcionais depende mais dos dados clínicos (subjetivos) do que de dados laboratoriais (objetivos).
De acordo com Silva et al. (2008). no que se refere ao diagnóstico da dispepsia funcional (DF), a falta de uniformidade em relação à definição motivou a realização de reuniões de especialistas de diferentes países, sendo mais conhecidas as de Chicago, nos EUA, e de Cortina e Roma, na Itália. As conclusões do Consenso de Roma II foram publicadas em livro em 2000 e representam o esforço da comunidade científica para, a partir das investigações realizadas nos últimos anos, sistematizar o conhecimento a respeito dos transtornos gastrointestinais funcionais.
O Consenso de Roma II recomenda que a DF seja diagnosticada quando, em pelo menos 12 semanas consecutivas ou não, nos últimos 12 meses, o paciente apresentar: dor ou desconforto no abdome superior, de caráter persistente ou recurrente, com peso epigástrico pós-prandial e/ou saciedade precoce e/ou náuseas e/ou vômitos e/ou distensão abdominal; ausência de doença orgânica que possa explicar os sintomas; ausência de evidências de que a dispepsia é aliviada pela evacuação ou associada à alteração na freqüência ou na forma das fezes.
Supõe-se que a DF seja um distúrbio psicossomático, com início multifatorial: fatores psicológicos, sociais e culturais que interagem com variáveis biológicas. A associação entre DF e depressão tem sido avaliada nos últimos anos mediante diferentes métodos e instrumentos de pesquisa. Uma revisão dos principais estudos sobre DF e sintomas psicológicos, citada por Silva et al. (2008), mostra que a prevalência de depressão ou de sintomas depressivos é alta nos dispépticos funcionais, indicando a existência de uma associação.
Recentemente, dando continuidade a preocupação com os distúrbios funcionais gastrointestinais e fundamentados na premissa de que os distúrbios funcionais apresentam alterações motoras e/ou sensitivas similares, foi sugerido em 2006 os Critérios de Roma III. Os Critérios de Roma III têm permitido uma melhor padronização da linguagem científica sobre os distúrbios funcionais e através de atividades contínuas entre especialistas de diversos países, desta vez inclusive com participação de membros de países em desenvolvimento como o Brasil, revisaram os Critérios de Roma chegando ao novo Consenso denominado de Roma III. Os especialistas do Consenso de Roma III definiram que, para o diagnóstico de distúrbio funcional gastrointestinal, é necessário que os sintomas tenham se iniciado há, no mínimo, 6 meses e que estes sintomas estejam presentes e ativos nos últimos 3 meses.
É importante enfatizar alguns outros dados obtidos na anamnese que podem também ajudar no raciocínio clínico em busca do diagnóstico correto. Pacientes com dor abdominal persistente e refratária ao tratamento usual, história familiar positiva de neoplasia do trato gastrointestinal ou de doença ulcerosa péptica, vômitos persistentes, portadores de distúrbio endócrino-metabólico (diabetes mellitus, hipertireoidismo), uso de crônico de medicamentos (antiinflamatórios não-esteroidais - causa freqüente de lesões do trato digestivo alto, antibióticos, teofilinas, digitálicos, ferro), além de fatores dietéticos como o uso da cafeína e hábitos como alcoolismo e tabagismo, também merecem consideração na abordagem do paciente dispéptico na tentativa de afastar causas orgânicas da dispepsia.
A dispepsia pode ser causada por uma série de alimentos, medicamentos, doenças do trato gastrointestinal, além de doenças sistêmicas. Uma evidência de causa orgânica como responsável pelo quadro dispéptico é encontrada em menos de 40% dos pacientes, geralmente devido à doença ulcerosa péptica, doença do refluxo gastroesofágico, ou em menor proporção o câncer gástrico. Na outra metade não se detecta a causa estrutural dos sintomas sendo estabelecida à dispepsia funcional ou não orgânica (MOTTA, 2008)
Referências
DONALDSON, R. M. Dyspepsia. The broad etiologic spectrum. Hosp Pract, 22 (9A): 41-9, 1987.
HORROCKS, J.C.; De DOMBAL, F. T. Clinical presentation of patients with "dyspepsia". Detailed symptomatic study of 360 patients. Gut 19(1):19-26, 1978.
MOTTA, R. Abordagem do Paciente com Dispepsia. Endoclinic: especialidades médicas. 2008. Disponível em: http://www.endoclinic.com.br/ler.php?id=1. Acesso em: 06 fev 2009.
OLIVEIRA, S. S. Prevalência de dispepsia e fatores sociodemográficos. Rev Saúde Pública, 40 (3):420-7, 2006
SILVA, R. A. et al. Dispepsia funcional e depressão como fator associado. Arq Gastroenterol, v. 43, n. 4, p. 293-298, 2008.