A atuação
médica é movida principalmente por dois grandes princípios morais: a
preservação da vida e o alívio do sofrimento.
O estudante
de medicina, dentro da sua formação, vai aprendendo a se comprometer com a
vida. Toda a sua capacitação é voltada para a cura. E quando geralmente a morte
se apresenta na prática hospitalar traz muita frustração e sentimento de
impotência, pois existe um despreparo para lidar com este evento irreversível.
No hospital,
no ensino chamado de "hospitalocêntrico", o problema do
distanciamento do universo do doente por parte dos médicos e estudantes de
medicina é mais crucial. Os currículos das Escolas de Medicina, centrados no
hospital, são mencionados como um fator importante para a manutenção do modelo
biomédico baseado na racionalidade técnica, e esse modelo, por sua vez, é
responsabilizado pela chamada "desumanização" da Medicina, por parte
de outros profissionais da área de Saúde e de intelectuais na área de Ciências
Humanas.
Contudo, a
tendência atual é que o ensino médico deixe de ser apenas racional e
científico. As reformas curriculares apontam nesta direção. Assim, com uma
formação humanística mais valorizada, o estudante de medicina deve aprender a
acompanhar o paciente terminal e sua família. É preciso menos distância do
estudante em relação a este cenário. Infelizmente, quando se fala de morte para
o estudante de medicina, abordam-se ainda apenas conceitos biológicos,
mecânicos e materialistas, esquecendo-se da concepção filosófica, cultural e
social. Se não é proporcionada aos alunos de graduação em Medicina uma
preparação para a morte dos pacientes, como fazem eles para enfrentar essa
realidade? Tornam-se insensíveis para enfrentar mais facilmente a situação? O
que sente um estudante de medicina diante da morte de um paciente que vem
acompanhando?
Minha
primeira vivência com a morte de um paciente foi no meu sexto período de
graduação. Hoje aquele é o doente que mais lembro quando penso sobre a questão
da morte de um paciente jovem. Era um paciente de cerca de 24 anos, portador de
insuficiência valvar grave. Era proveniente do Sertão da Paraíba e nenhum
familiar o acompanhava. Eu o visitava diariamente como estudante de medicina,
sob orientação de meu professor, um grande clínico na cidade de Campina Grande.
Este nosso paciente deveria ser submetido a uma cirurgia cardíaca em Recife, e
faltavam poucos dias para que fosse transferido. Parecia compensado
clinicamente, na medida do possível, pois sua lesão era gravíssima. Em um
domingo em que fui visitá-lo, não estava mais lá em seu leito. Havia morrido à
noite, de edema pulmonar agudo. E estava só, sem nenhum parente, nenhum
conhecido, nenhum amigo.
Senti um
misto de frustração, compaixão, mas também de culpa. Será que não poderia ter
sido agilizada sua transferência para o outro hospital? Será que faltou fazer
algo importante por aquele paciente? "O que eu estava fazendo ali?".
Não tinha sido preparada para enfrentar a morte de um paciente ainda. Era muito
jovem ainda para entender a necessidade de aceitar a idéia da morte de um
doente.
Vários anos
depois, já no segundo ano de Residência em Clínica Médica, no Hospital
Universitário Lauro Wanderley, e após dois anos de residência médica em
Pediatria, vivendo literalmente dentro de um hospital, acompanhei um paciente
com um problema semelhante ao do doente do caso que relatei acima. Ele era
jovem também e tinha uma valvulopatia, já com valva protética inserida, e
estava em tratamento para endocardite infecciosa. Porém reagi de forma diversa
diante de sua perda, embora este paciente tenha me lembrado aquele primeiro
doente em estado grave que acompanhei quando estudante de Medicina, e apesar de
ter maior responsabilidade sobre sua conduta clínica, já após na pós-graduação
nesse momento.
Será que a
vivência hospitalar nos torna mais insensíveis? Ou o amadurecimento e o
entendimento facilitam o enfrentamento da situação, tornando as coisas menos
complicadas? Nesse sentido, não há dúvidas de que é preciso passar por todo um
processo de aprendizagem neste cenário. O tempo pode nos fazer aprender a lidar
com os desafios e limites da profissão.
As pesquisas
nesta área sugerem que durante o treinamento médico ocorre uma diminuição nas
habilidades éticas e humanísticas dos estudantes (CRANDALL et al., 1993; SHORR
et al., 1994), e especialmente mostram que há uma diminuição na sensibilidade
ética (HEBERT et al., 1992). Por outro lado, no Brasil, Silva et al. (2005)
observaram um aumento na sensibilidade ética, contrariando os dados da
literatura internacional sobre este aspecto. Saiyd et al. (2005) chamam este fenômenro,
verificado em médicos, de “calosidade emocional”, enquanto Meleiro (1999)
denominou-o de “armadura profissional”. Tais comportamentos ajudariam os
médicos a manterem essa imagem de “distanciamento emocional” (QUINTANA; ARPINI,
2002).
Há dados de
pesquisa atuais que sugerem esse aspecto de distanciamento emocional do médico
em relação ao sofrimento do doente. que o cuidado de pacientes que morrem em
meio hospitalar é insuficiente e de má qualidade. Vários estudos têm mostrado
que o atendimento terminal no hospital é deficiente no que diz respeito à
melhora de sintomas físicos e à capacidade de abordar as necessidades
emocionais e psicossocial dos pacientes. Em um estudo observacional em que
foram observados 50 pacientes ditos terminais, observou-se que eles receberam
apenas uma mínima atenção, tanto por parte dos médicos quanto da enfermagem
(MILLS et al., 1994). Neste estudo, demonstrou-se que os sintomas físicos dos
pacientes terminais estavam inadequadamente controlados, e cuidados básicos de
enfermagem foram muitas vezes omitidos. Outra evidência mostra que as pessoas
que morrem no hospital muitas vezes tinham dor, dispnéia, agitação e outros
sintomas que são difíceis de controlar, e que, embora o paciente desejasse
cuidados de conforto, muitos continuaram a receber tratamentos agressivos para
sustentar vida até à sua morte (LYNN et al., 1997).
Voltando ao
questionamento sobre o impacto que tem o estudante de medicina diante de
determinados fatos da prática hospitalar, é importante salientar que a vivência
emocional deste impacto é necessária. O impacto que sofremos ao nos depararmos
com situações de vida e morte no início da carreira de Medicina é necessário
para vencermos essa tenacidade que muitos profissionais de saúde possuem de que
o que interessa é a vida, é curar a qualquer custo. A maioria dos estudantes de
Medicina entra na faculdade motivada por uma idéia onipotente de Medicina
retirada de fatos heróicos vistos na TV, cinema ou literatura, em que não há
limites para a atuação médica. Raramente se ouve que entram na Medicina para
"aliviar o sofrimento, consolar um doente e sua família".
De acordo
com Caixeta (2005), essa onipotência quase nunca é quebrada durante o curso de
graduação, assim como não é estimulado o lado hipocrático humanista e solidário
que virá a ser a base da maioria dos procedimentos médicos. Tal desejo
aparentemente humanista de "salvar vidas" esconde apenas onipotência,
na maioria das vezes perigosa, porque é revestida por uma espécie de
"obsessividade", que visa não exatamente ao bem-estar do paciente,
mas sim ao preenchimento de um "ideal de ego", o ideal de ter sucesso
sempre.
Assim,
considero finalmente, a título de conclusão desta postagem, que a vivência
hospitalar não nos torna insensíveis, mas as experiências que vivemos nesse
contexto de dor e sofrimento vão nos fazendo amadurecer e conhecer nossos
limites. E devemos passar a compreender a noção de que, embora se faça tudo que
é possível para salvar um doente, nem sempre teremos sucesso.
Referências
CAIXETA, M. Psicologia
Médica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005, cap. 57.
CRANDALL, S.J. S., VOLK, R.J.; LOEMKER, V. Attitudes
of medical students toward providing care for the underserved. J Am Med
Assoc. 269 (9): 2519-23, 1993.
HEBERT, P.C.; MESLIN, E.; DUNN, S.R. Measuring the
ethical sensitivity of medical students: a study at the University of Toronto. J
Med Ethics. 18 (6): 142-7, 1992.
LYNN, J.; TENO, J.; PHILLIPS, R. Perceptions by family
members of the dying experience of older and seriously ill patients; SUPPORT
Investigators Study to Understand Prognoses and Preferences for Outcomes and
Risks of Treatments. Ann Intern Med, 126: 97-106, 1997
MILLS, M.; DAVIES, H., MACRAE, W. Care of dying
patients in hospital. BMJ 309: 583-6, 1994 .
QUINTANA,
Alberto M. & ARPINI, Dorian M. A atitude diante da morte e seu efeito
no profissional de saúde: Uma lacuna da formação? Revista Psicologia Argumento, 19 (30): 45-50, 2002.
SHORR, F.; HAYES, R.P.; FINNERTY, J.F. The effect of a
class in medical ethics on fist year medical students. Acad Med. 69 (12):
998-1000, 1994.
SILVA, J. T.
N. et al. Medida da Sensibilidade Ética em estudantes da Medicina: um Estudo na
Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Rev Bras Educ Méd,
29 (2): 103-109, 2005
Imagem:
a foto da postagem foi extraída de http://www.ccctg.ca/publications_abstracts.php