Uma das críticas mais temidas atualmente pelos professores universitários é a de autoritarismo. Ser autoritário está associado à repressão e a métodos de ensino tradicionais, os quais a maioria tenta superar.
Mas buscar manter a disciplina não significa autoritarismo no ensino superior. A disciplina deve ser concebida como instrumento educativo no ensino universitário.
A esse respeito, qual deveria ser a postura predominante do docente no ensino superior em relação ao aluno? Consciente ou espontaneísta? Autoritária ou repressora? Compromissada ou descompromissada? Licenciosa e permissiva?
Cada professor tem sua prática pedagógica, aprendendo a cada dia com seus próprios alunos. E ser professor não é fácil. O psicanalista Sigmund Freud dizia que existem três tarefas impossíveis: educar, governar e fazer psicanálise. A complexidade do lecionar está na sua essência. E esta complexidade aumenta quando se procura uma definição de disciplina.
Estrela (1992) afirma que o esclarecimento do conceito de disciplina não é simples nem pacífica, já que estão envolvidos quadros de referência multidisciplinares, ângulos diversos através dos quais este fenômeno pode ser visto, e que estão longe de ser consensuais.
Mas para este autor, a antítese da disciplina, a indisciplina, deve ser entendida como a manifestação de atos/condutas, por parte dos alunos, que têm subjacentes atitudes que não são legitimadas pelo professor no contexto regulador da sua prática pedagógica e, consequentemente, perturbam o processo normal de ensino-aprendizagem. Ainda de acordo com o autor a que recorremos, um dos níveis da indisciplina “conflitos da relação professor-alunos”, inclui os comportamentos que, de algum modo, põem em causa a autoridade e o estatuto do professor.
Muitas vezes a informalidade excessiva, a licenciosidade, a falta de educação que grassa entre alguns jovens universitários, certamente são nocivos ao convívio entre alunos e professores. É muito salutar a troca de idéias, mas é preciso rejeitar veementemente a inversão de valores que atinge nosso sistema educacional, onde o professor é muitas vezes tratado com muita informalidade, às vezes até com licenciosidade, e este, por sua vez, trata os alunos de igual maneira. Bem, ele é um modelo, e seu comportamento se reflete no comportamento do aluno.
Contudo, o problema não está na informalidade em si, mas na falta de respeito entre as pessoas. Respeito é o principal fundamento existencial, independente das diferenciações hierárquica ou etária. É preciso recuperar a civilidade, respeito e dignidade na relação professor-aluno. E a disciplina é um caminho. Isso é uma prática de liberdade, como diz uma canção de Renato Russo, "disciplina é liberdade".
Falar em disciplina como sinônimo de liberdade pode ser visto como algo fascista. Como associar disciplina à liberdade? Pensando na sua completa oposição. A idéia de liberdade associada ao "tudo pode, pode tudo", determinada pela volatilidade dos desejos seria uma situação de anarquia. O anarquista é visto como um sujeito que não tem nenhum método, nenhum compromisso com o que faz e deve apenas “deixar tudo acontecer naturalmente, ao acaso.
Existem coisas chatas na disciplina para o jovem estudante universitário: ter compromisso, responsabilidade, pontualidade, trabalho, determinação, força de vontade, método, coerência... Constância, diligência. Isto tudo é disciplina. Não se trata de um quartel-general. Está longe disso o que se considera como respeito à disciplina nas relações professor-aluno na universidade. Para isso, recorremos aos escritos pedagógicos de Immanuel Kant.
Um dos pontos fundamentais da pedagogia de Kant é, sem dúvida, essa questão da disciplina na educação. Não por acaso, em um de seus textos sobre a pedagogia, Kant afirma que é através da disciplina que o homem transforma a animalidade em humanidade. Para ele, a disciplina exerce um papel fundamental no processo educacional (KANT, 2005a).
Segundo a visão kantiana, desde a primeira infância, a pessoa deve se acostumar a seguir determinadas regras. No início, essas regras dizem respeito basicamente ao horário de comer, de dormir, de brincar e, assim por diante. Por outro lado, a educação deve mostrar ao homem que ele é um ser destinado a viver em sociedade juntamente com outros homens (KANT, 2005b).
A racionalidade (no comportamento humano) deve manifestar-se em todas os atos intencionais. Por meio da educação, o ser humano, segundo Kant, deve tornar-se disciplinado (disciplinar-se é pôr freio na natureza selvagem ou animal), tornar-se culto (a cultura compreende a instrução em geral), tornar-se prudente e, por fim, deve visar fundar a moralidade. Disciplinar não é submeter o aluno à escravidão ou à passividade (KANT, 2005a).
O termo disciplina significa treinamento, auto-controle, hábitos de obediência, controle da mente e do caráter. Neste sentido, está a questão da insolência expressa por muitos alunos jovens e impulsivos no início do curso universitário. Será que insolência faz parte do processo de aprendizado, ao revelar que o aluno tem espírito crítico? Obviamente isso não é o mesmo que arrogância. Muitas vezes pode ser somente uma tentativa de o aluno ensaiar a própria autonomia de pensamento.
Mas apenas respondendo a seus instintos mais imediatos, o aluno não reflete, e não refletindo, não propicia o bom desenvolvimento da razão, único meio possível para o esclarecimento.
É por isso que a disciplina deve levar o aluno, num primeiro momento, a restringir seus impulsos imediatos. Não se trata de coação, mas de uma ação que não cumpre a tarefa de limitar a liberdade em sentido moral, porém de limitar a liberdade anárquica, instintiva e irresponsável. Kant nos ensina, desse modo, que a finalidade última da educação é a formação moral dos indivíduos e a possibilidade de seu esclarecimento.
Assim a disciplina possui um caráter determinante e fundamental em todo o processo educacional. Com ela podemos esperar um caminho possível, e talvez o único caminho possível, para o esclarecimento. Não há limites ao desenvolvimento para o aluno inteligente e disciplinado. E este sabe se expressar e sabe respeitar o outro, seja seu colega ou seu professor.
É nesse sentido que primar pela disciplina não é a opressão do aluno. Para o próprio Paulo Freire (2003) o educador, que em sua prática busca promover a autonomia dos educandos, deve estar atento a essa relação autoridade-liberdade. Para que haja a necessária disciplina sem haver autoritarismo ou licenciosidade, o equilíbrio entre ambas é necessário.
"O autoritarismo é a ruptura em favor da autoridade contra a liberdade, e a licenciosidade, a ruptura em favor da liberdade contra a autoridade" (FREIRE, 2003). Assim o autoritarismo não é mais autoridade, mas abuso de autoridade, enquanto a licenciosidade não é mais liberdade, mas deturpação da liberdade. Ambos são nocivos.
Assim, a construção respeitosa da disciplina deve incluir a educação da vontade. A vontade só se torna autêntica em sujeitos que assumem seus limites (FREIRE, 2003). Por isso a disciplina da vontade é uma prática difícil mas necessária, é por meio dela que se constitui a autoridade interna, a partir da introjeção da autoridade externa, o que permitirá que a liberdade viva plenamente suas possibilidades, as quais incluem a construção da própria autonomia.
A vivência da tensão dialética entre liberdade e autoridade nos mostra que elas podem não ser antagônicas necessariamente uma da outra. Ainda segundo Paulo Freire, a autonomia do aluno é conquistada gradualmente, pois este é um processo que consiste no amadurecimento do ser para si mesmo, por isso a educação deve possibilitar experiências que estimulem as decisões e a responsabilidade.
Portanto, Immanuel Kant e Paulo Freire, em suas respectivas épocas, espaços e culturas, formularam concepções peculiares de disciplina e autonomia. Depois de repassar alguns conceitos destes dois pensadores, temos que defender a educação como formação do ser humano que se dá como processo de gestação da autonomia do pensamento, da ação e da palavra.
A autonomia do pensamento se dá na medida em que leva o aluno a pensar por si mesmo de acordo com princípios racionais, e da ação e da palavra, na medida em que na nossa sociedade existimos pela palavra, por isso, para que alguém seja autônomo precisa aprender a dizer a sua palavra. Então, caros alunos, aprendam a dizer a sua palavra. Mas sem licenciosidade.
Referências
ESTRELA, M. T. Relação pedagógica, disciplina e indisciplina na aula. Porto: Porto Editora, 1992.
FREIRE, P. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 2003
KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005a.
KANT, I. Que significa orientar-se no pensamento? In: Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 2005b.
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