12 de novembro de 2009

Percepção da Disparidade entre o Justo e o Legalizado

"Age apenas segundo uma máxima (um princípio) tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" (KANT, 1988, p. 59).


Por Rilva Lopes de Sousa-Muñoz

Nossa relação com a realidade é mediada pela percepção. Mas parece que cada um tem uma percepção do que é certo? O que é certo é tão relativo assim?... Só sei que nossa percepção pode se tornar empobrecida, na medida em que escolhe parcialmente algumas coordenadas para demarcarem a representação, abandonando outras. Isso pode se dar na articulação entre interesses individuais e coletivos. Interesses individuas se sobrepõem. Esse aspecto deve estar na mira de nossa percepção sobre cidadania se não quisermos nos manter alheios ao que acontece. 

Nesta sociedade competitiva, e por isso, fragmentada, cada um buscando seus próprios interesses, nos faz ver que as pessoas parecem ter perdido o sentido do que é correto. Assim, nos deparamos frequentemente com situações que nos exigem julgamento ético do que é "justo" ou "moralmente correto". Nesse sentido, é muito fácil perdermos o senso de medida quando participamos de fatos que exigem a percepção de disparidades, como a que existe na percepção da disparidade entre o que é justo e o que é legalizado, entre o que é interesse individual e o que é do coletivo. E, sobretudo, entre o que é imparcial e o que é resultado de favorecimentos especiais.

Não se pode tocar nesse tema sem recorrer à Filosofia. Aristóteles destaca a igualdade e a proporcionalidade como os mais importantes princípios da justiça distributiva. O filósofo entende que a função do direito é distribuir, na desigualdade, na proporcionalidade. O justo é o proporcional, ou o meio termo entre os iguais e desiguais (ARISTÓTELES, 2001, p. 96). Ser justo é ser equitativo, então? Segundo algumas leis, não. O problema é que toda lei é de ordem geral, mas é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em situações particulares? Habermas (1986) coloca nesse mesmo nível de importância a preocupação com o respeito à igualdade de direitos entre as pessoas (ou cidadãos) enquanto membros de uma comunidade onde compartilham redes de relações intersubjetivas de reconhecimento mútuo. Mas as noções de justiça e solidariedade, especialmente quando associadas ao conceito de cidadania, no âmbito filosófico, referem-se à teoria moral. Moral no sentido filosófico. Vianna (2007) propõe que sempre que o equilíbrio entre legalidade e justiça for inadequado se poderá se falar na existência de um déficit de cidadania. O que é direito ou justo é uma ação adequada a todas as pessoas em uma mesma condição e com pretensões semelhantes.
Vamos ao exemplo prático que nos motiva esta postagem. Frequentemente, em reuniões departamentais de uma universidade, há submissão de pareceres sobre questões inteiramente polêmicas, altamente discutíveis, mas que são encaradas de forma natural por alguns pares, de modo a banalizar o fato em questão. Quando os membros de um departamento consentem em que algo se tenha como adequado e ajustado a alguém, mas não considerando a igualdade de oportunidades a outros, isso é um fato polêmico. Isso deveria gerar uma discussão mais séria e ponderada. Em decisões desse gênero, a imparcialidade racional deveria conduzir o rito do início ao fim, e não apenas os aspectos afetivos e emocionais. É próprio da justiça dar o de direito a cada um, pressupondo, porém, a diversidade entre um e outro; pois se alguém se proporciona a si mesmo, ou proporciona a um amigo ou colega próximo, um "direito", um direito que pode até ser legalizado, mas é eticamente discutível, isso precisa gerar discussão. Quando vemos as pessoas considerarem a parcialidade como algo natural, devemos nos espantar e não permanecer apáticos.
Mas... considerar apenas o que está na lei, em meio a apelos afetivos, sem avaliar igualdade de outros profissionais que poderiam também almejar ao mesmo direito - a isso se pode chamar propriamente de "justo"? A questão de potência na decisão do justo e o legalizado remete à obra de Jacques Derrida, "Força de Lei", em que ele afirma que para ser justa, uma decisão deve não apenas seguir uma regra de direito ou uma lei geral, mas deve confirmar seu valor. Algo pode ser provavelmente legalizado, conforme ao direito, “mas não poderemos dizer que é uma decisão justa". Não cabe falar da justiça nesse caso embora possa ser algo legal, previsto na lei (VIANNA, 2007). 
É por meio dos comportamentos e práticas determinados pelos códigos legais, mas que não consideram o modo como se deve definir o justo e o injusto, que podemos deixar de considerar os direitos de todos. 

Referências 
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: UnB, 2001. 
DERRIDA, J. Força de Lei: O fundamento místico da autoridade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. HABERMAS, J. Técnica e ciência como "ideologia". Lisboa: Edições 70, 1993. 
KANT. I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 1988. 
VIANNA, L. V. O legal e o justo: A propósito do diálogo entre dois juízes e um cientísta político. Boletim CEDES: Centro de Estudos Direito e Sociedade, 2007. Disponível em: http://cedes.iuperj.br/banco%20artigos/Filosofia.pdf