Por Rilva
Lopes de Sousa-Muñoz
Por ser uma questão de natureza ética e moral, a mentira é pouco
discutida no contexto da Medicina, talvez por constituir um tema óbvio (ou,
pelo contrário, altamente complexo).
Contudo, a mentira pode ser sintomática de uma doença mental.
Começo este texto por uma breve consideração da mentira como um fato
cultural, mencionando a permissividade que existe na sociedade como um todo em
relação à mentira, à corrupção e à falta de ética.
Há boas razões para acreditar que o jogo da mentira é inteiramente
refratário a qualquer critério de plausibilidade (GUERREIRO, 1989). Por acaso,
pode-se dizer "Vou mentir para você agora" e fazer justamente isto
logo em seguida?
Segundo Outeiral (2004), a mentira ocupa um lugar importante na cultura
contemporânea da sociedade pós-moderna. Considera-se “natural” que todas as
pessoas, em algum momento de suas vidas, tenham que dizer alguma mentira. Há
até um livro intitulado “Da impossibilidade de viver sem mentir” (KRÜGER, 1998).
Em um filme americano recente, intitulado “O Mentiroso”, tentou-se fazer uma comédia sobre a onipresença
da mentira na profissão jurídica. Os
cineastas tentaram criar o riso a partir de um enredo que não parece nada engraçado
sobre como a mentira e o engano se tornaram generalizados entre os advogados. Sem mentir, o personagem principal não
poderia funcionar no sistema judicial. O personagem cômico do filme
salvou sua vida e sua integridade moral, descobrindo a importância
de ser verdadeiro. Mas, para isso,
ele teve que procurar outro tipo de trabalho.
O ato de mentir, contudo, é mais ou menos tolerado conforme os valores
de cada povo e cada época. E até numa mesma sociedade podem coexistir graus
diferentes de aceitação (ou repúdio) da mentira, de acordo com as expectativas
que cada grupo social e das características de cada momento histórico.
"Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Essa frase foi usada
pelo ministro da propaganda nazista em um momento histórico em que a “verdade”
foi construída sobre uma grande mentira.
A verdade é que a humanidade mente muito. Jellison (1998, apud O’SEANERY,
2007) estudou o hábito de mentir entre americanos adultos, verificando que
estes escutam, leem ou dizem cerca de duzentas mentiras por dia, ou seja,
ocorre uma mentira a cada mais ou menos cinco minutos.
A questão da mentira é um tema importante da filosofia moral.
Schopenhauer admite a mentira usada no limite da autoconservação, num ato de
"legítima defesa" (SCHOPENHAUER, 1995). Mas para Kant a mentira é má
em si mesma, na sua origem, sejam quais forem as motivações e consequências.
Segundo este filósofo, é preciso sempre dizer a verdade, quaisquer que sejam os
seus efeitos e o contexto histórico. Por sua vez, Nietzsche (1987) é incisivo a
respeito da mentira como regra e não exceção:
“No homem, a arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar por trás das costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater as asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade” (NIETZSCHE, 1987, p. 54).
Sobre a banalização da mentira, Caniato (2005) afirma que "na
contemporaneidade a mentira constitui um dos principais atributos das relações
sociais, instituindo-se como valor eticamente perverso e destrutivo em todos os
níveis da vida dos homens. Haveria uma banalização da mentira como uma das
perversões da sociedade contemporânea e sua internalização como destrutividade
psíquica" (CANIATO, 2005).
Ainda segundo Caniato (2005), tudo passa a ser aceito sem julgamento nem
hierarquia de valor, transformando-se em norma social. Quando são
internalizadas pela consciência moral de cada um e sancionadas pelas mentes
individuais do grupo circundante, passam a ser percebidas e identificadas como
originárias do mundo interno dos sujeitos, portanto "naturalizadas".
Contudo, a mentira existe como produto da comunicação humana. Mentir é
um comportamento verbal aprendido (FIGUEIREDO, 2008). O ato de mentir está
relacionado à intenção de enganar, ludibriar, e não de apenas deturpar a
verdade. Santo Agostinho (apud DERRIDA,
1996) assinalava que não há mentira sem intenção, desejo ou vontade de enganar
(fallendi cupiditas, voluntas
fallendi).
A mentira se dá quando se oferece um conhecimento falso a um indivíduo
que provavelmente fará uso de nossa informação para direcionar sua ação, ou
seja, a mentira tende influir sobre o conhecimento alheio não somente com
intenção de fornecer uma informação errada, mas também, de forma a determinar a
vontade e a ação do indivíduo, isto é, há a intenção de induzir a vontade
manifesta em outro a agir segundo os fins de meu interesse (FIGUEIREDO, 2009).
A mentira como evento do desenvolvimento humano foi estudada por Jean Piaget. Ele mostrou que a compreensão das regras necessárias ao convívio em sociedade consolida-se na mente infantil por volta dos sete anos (RIBAS JÚNIOR, 1993). A mentira funcionaria como uma brincadeira até essa fase desenvolvimental, como um teste da relação da criança com o universo que a cerca. É só a partir dos sete anos, portanto, que as mentiras infantis devem ser objeto da atenção de pais e professores.
A mentira como evento do desenvolvimento humano foi estudada por Jean Piaget. Ele mostrou que a compreensão das regras necessárias ao convívio em sociedade consolida-se na mente infantil por volta dos sete anos (RIBAS JÚNIOR, 1993). A mentira funcionaria como uma brincadeira até essa fase desenvolvimental, como um teste da relação da criança com o universo que a cerca. É só a partir dos sete anos, portanto, que as mentiras infantis devem ser objeto da atenção de pais e professores.
De acordo com Ballone (2006), a maioria das pessoas pode ser
classificada entre os "mentirosos fisiológicos", e as mais
fisiológicas das mentiras são os falsos elogios e as denominadas popularmente
"desculpas esfarrapadas"...
Mas a mentira também pode ser sintoma de transtornos mentais. Como
lembra Outeiral (2004), a mentira é uma das principais manifestações analisadas
pelos psicoterapeutas: os assuntos sobre os quais a pessoa mente forneceriam
ótimas pistas sobre suas áreas mais problemáticas, aquilo que ela não enfrenta
ou quer esconder, até de si mesma.
Em contraste com outras formas de mentiras, a mentira patológica parece
ser não planejada. Questiona-se se este é sempre um ato consciente ou se o
mentiroso patológico teria controle sobre suas mentiras ou não. O hábito de
mentir fantasticamente pode refletir um transtorno da personalidade que alguns
autores chamam de “pseudologia fantástica”, que seria caracterizado por uma
compulsão a fantasiar uma vida fictícia para causar mobilização e perplexidade
em outras pessoas (BALLONE, 2006).
A mentira como parte de transtornos mentais pode correr nos problemas do
controle dos impulsos, da mesma forma que ocorre no jogo patológico, na
cleptomania, na bulimia e na dependência química. A mentira patológica também
pode ocorrer em indivíduos com transtorno de personalidade anti-social ou
personalidade psicopática.
A mitomania é uma condição extrema na qual a pessoa vive frequentemente envolvida na mentira. O Dicionário de Psicanálise estabelece a seguinte definição de mitomania: "tendência, mais acentuada nos estados psicopatológicos, para criar e relatar extraordinários eventos imaginados como acontecimentos reais da vida consciente" (CABRAL, 1971).
A mitomania é uma condição extrema na qual a pessoa vive frequentemente envolvida na mentira. O Dicionário de Psicanálise estabelece a seguinte definição de mitomania: "tendência, mais acentuada nos estados psicopatológicos, para criar e relatar extraordinários eventos imaginados como acontecimentos reais da vida consciente" (CABRAL, 1971).
A mentira como parte dos transtornos factícios pode ser exemplificada
pela "síndrome de Munchausen". Esta é um transtorno factício no qual
os pacientes simulam, exageram ou provocam uma doença. Esses transtornos são
denominados de "factícios" por derivação da palavra latina que
significa “artificial”, sendo transtornos psiquiátricos associados a sérias
alterações emocionais. Esta entidade é caracterizada pela busca consciente e
voluntária do indivíduo de permanecer a qualquer custo no lugar de doente, sem
outra intenção de ganho, seja ele material ou afetivo.
Ao contrário daqueles indivíduos que simulam uma doença a fim de obter
vantagens através deste comportamento, os pacientes com transtorno factício
possuem o objetivo de assumir o papel de "paciente" ou de
"vítima". Na literatura científica há relatos de paraplegia factícia
(ARTEAGA-RODRIGUEZ, 1999), surdo-cegueira factícia (MINER; FELDMAN, 1998) e até
casos de câncer de mama factício, resultando em uma mastectomia desnecessária
(FELDMAN, 2001) entre outros problemas simulados.
A tendência patológica para mentir raramente fica restrita a um único
evento. Além disso, a mentira patológica difere da mentira comum principalmente
porque na mentira comum há um objetivo, um propósito de enganar para obter
alguma vantagem, enquanto na mentira patológica não há essa finalidade. É
apenas a expressão do funcionamento mental defeituoso. O mentiroso patológico é
pouco reflexivo e, ao contrário do mentiroso normal, mente sem julgar o que
diz, não se dando conta de que muitas vezes o que está dizendo chega a ser
bizarro. Pacientes com esse tipo de transtorno muitas vezes apresentam outros
problemas mentais e história de dificuldades de manter relacionamentos
saudáveis. São frequentes ainda comorbidades com depressão ou abuso de
substâncias psicoativas (CAMARGO; BRANDT, 2008).
Atualmente, acredita-se que há um substrato biológico para os mentirosos
patológicos. O mapeamento funcional do cérebro por ressonância
eletromagnética (functional
magnetic resonance imaging) pode identificar áreas cerebrais
ativadas nos enunciados verdadeiros e falsos, demonstrando, então, uma
"evidência neurológica" da mentira.
Pesquisas apontam que o córtex pré-frontal demanda maior fluxo sanguíneo
para gerar histórias inverídicas. Ao mesmo tempo, as áreas do hemisfério
direito, ligadas às emoções, também são mais estimuladas no momento da mentira.
Pesquisas realizadas recentemente constataram ativação bilateral no córtex
pré-frontal, com variações de repartição entre as massas cinzenta e branca do
cérebro, quando relacionadas a mentirosos patológicos, anti-sociais e
indivíduos normais, concluindo-se que os mentirosos patológicos teriam 25,7%
mais de substância branca no córtex pré-frontal que os anti-sociais e 22% a
mais que os indivíduos considerados normais (CAVALCANI et al., 2006).
Sendo assim, a mentira existe ao longo de toda a escala patológica. Será
que a saúde mental só é compatível com a verdade? O ato de mentir ou fingir
pode ser de alguma forma justificável? Ou será que a mentira é um mal que
escolhemos em plena posse da nossa saúde mental?
Referências
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Relato de caso. Arq.
neuropsiquiatr 57(3B): 881-5, 1999.
BALLONE, G. J. Sobre a Mentira. PsiqWeb 2006. Disponível em: www.psiqweb.med.br. Acesso
em: 03 nov 2009.
CABRAL, C. Dicionário
de Psicologia e Psicanálise. São Paulo: Expressão e Cultura,
1971.
CAMARGO, A. L. L.; BRANDT, R. A. Transtornos factícios: Desafio
ético. Einstein: Educ
Contin Saúde. 6 (4 Pt 2): 188-9, 2008
CANIATO, A. A banalização da mentira como uma das perversões da
sociedade contemporânea e sua internalização como destrutividade psíquica: o
esfacelamento do processo de individuação na adolescência. In: Proceedings of the 1th Simpósio
Internacional do Adolescente, 2005, São Paulo (SP), 2005.
CAVALCANTI, C. E. B. et al. Correlações neurais na substância branca
pré-frontal em mentirosos patológicos: "a verdade por trás da
mentira" - síndrome de Pinóquio. J. bras. neurocir 17(3):121-125,
2006.
DERRIDA, J. História da mentira: prolegômenos. Estud. av. 10 (27):
7-39, 1996.
FELDMAN, M. D. Prophylactic
bilateral mastectomy resulting from factitious disorder. Psychosomatics. 42:519-521, 2001.
FIGUEIREDO, N. M. Sobre um suposto direito de mentir: um paralelo entre
Kant, Schopenhauer e Constant, e alguns conceitos schopenhauerianos Revista Urutágua: Revista
acadêmica multidisciplinar. Disponível em: http://www.urutagua.uem.br//007/07figueiredo.htm.
Acesso em: 04 nov 2009.
FIGUEIREDO J. Sobre
a mentira e o mentiroso. 2008. Disponível em:
http://recantodasletras.uol.com.br/ensaios/1203390.
Acesso em 04 nov 2009.
GUERREIRO, M. A. L. O dizível e o indizível: Filosofia
da linguagem. Campinas: Papirus,
1989.
MINER, I.; FELDMAN, M. D.
Factitious deafblindness: an imperceptible variant of factitious
disorder. Gen Hosp Psychiatry. 20:48-51, 1998.
KRÜGER, I. T. Da
impossibilidade de viver sem mentir. São Paulo: Pensamento
Cultrix, 1998
NIETZSCHE, F. Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral. São
Paulo: Nova Cultural, 1987.
O’SEANERY, C. Workplace Deception. 2007.
Disponível em:
OUTEIRAL, J. Breve
Ensaio Sobre a Mentira. São Paulo: Revinter, 2004.
RIBAS JÚNIOR, R. C. Consideraçöes sobre os modelos de desenvolvimento
cognitivo de Jean Piaget e de Lev Semenovich Vygotsky. Arq. bras. psicol. 45
(3/4): 137-49, 1993.
SCHOPENHAUER, A. Sobre
o Fundamento da Moral. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
Imagem: "Pinocchio",
ilustração de Enrico Mazzanti (1852-1910).