5 de novembro de 2009

Uma Breve Semiologia da Mentira


Por Rilva Lopes de Sousa-Muñoz

Por ser uma questão de natureza ética e moral, a mentira é pouco discutida no contexto da Medicina, talvez por constituir um tema óbvio (ou, pelo contrário, altamente complexo). Contudo, a mentira pode ser sintomática de uma doença mental.
Começo este texto por uma breve consideração da mentira como um fato cultural, mencionando a permissividade que existe na sociedade como um todo em relação à mentira, à corrupção e à falta de ética. 
Há boas razões para acreditar que o jogo da mentira é inteiramente refratário a qualquer critério de plausibilidade (GUERREIRO, 1989). Por acaso, pode-se dizer "Vou mentir para você agora" e fazer justamente isto logo em seguida?
Segundo Outeiral (2004), a mentira ocupa um lugar importante na cultura contemporânea da sociedade pós-moderna. Considera-se “natural” que todas as pessoas, em algum momento de suas vidas, tenham que dizer alguma mentira. Há até um livro intitulado “Da impossibilidade de viver sem mentir” (KRÜGER, 1998).
Em um filme americano recente, intitulado O Mentiroso”, tentou-se fazer uma comédia sobre a onipresença da mentira na profissão jurídica. Os cineastas tentaram criar o riso a partir de um enredo que não parece nada engraçado sobre como a mentira e o engano  se tornaram generalizados entre os advogados. Sem mentir, o personagem principal não poderia funcionar no sistema judicial. O personagem cômico do filme salvou sua vida e sua integridade moral, descobrindo a importância de ser verdadeiro. Mas, para isso, ele teve que procurar outro tipo de trabalho. 
O ato de mentir, contudo, é mais ou menos tolerado conforme os valores de cada povo e cada época. E até numa mesma sociedade podem coexistir graus diferentes de aceitação (ou repúdio) da mentira, de acordo com as expectativas que cada grupo social e das características de cada momento histórico. "Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Essa frase foi usada pelo ministro da propaganda nazista em um momento histórico em que a “verdade” foi construída sobre uma grande mentira.
A verdade é que a humanidade mente muito. Jellison (1998, apud O’SEANERY, 2007) estudou o hábito de mentir entre americanos adultos, verificando que estes escutam, leem ou dizem cerca de duzentas mentiras por dia, ou seja, ocorre uma mentira a cada mais ou menos cinco minutos.
A questão da mentira é um tema importante da filosofia moral. Schopenhauer admite a mentira usada no limite da autoconservação, num ato de "legítima defesa" (SCHOPENHAUER, 1995). Mas para Kant a mentira é má em si mesma, na sua origem, sejam quais forem as motivações e consequências. Segundo este filósofo, é preciso sempre dizer a verdade, quaisquer que sejam os seus efeitos e o contexto histórico. Por sua vez, Nietzsche (1987) é incisivo a respeito da mentira como regra e não exceção:
No homem, a arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar por trás das costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater as asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade” (NIETZSCHE, 1987, p. 54).
Sobre a banalização da mentira, Caniato (2005) afirma que "na contemporaneidade a mentira constitui um dos principais atributos das relações sociais, instituindo-se como valor eticamente perverso e destrutivo em todos os níveis da vida dos homens. Haveria uma banalização da mentira como uma das perversões da sociedade contemporânea e sua internalização como destrutividade psíquica" (CANIATO, 2005).
Ainda segundo Caniato (2005), tudo passa a ser aceito sem julgamento nem hierarquia de valor, transformando-se em norma social. Quando são internalizadas pela consciência moral de cada um e sancionadas pelas mentes individuais do grupo circundante, passam a ser percebidas e identificadas como originárias do mundo interno dos sujeitos, portanto "naturalizadas".
Contudo, a mentira existe como produto da comunicação humana. Mentir é um comportamento verbal aprendido (FIGUEIREDO, 2008). O ato de mentir está relacionado à intenção de enganar, ludibriar, e não de apenas deturpar a verdade. Santo Agostinho (apud DERRIDA, 1996) assinalava que não há mentira sem intenção, desejo ou vontade de enganar (fallendi cupiditas, voluntas fallendi).
A mentira se dá quando se oferece um conhecimento falso a um indivíduo que provavelmente fará uso de nossa informação para direcionar sua ação, ou seja, a mentira tende influir sobre o conhecimento alheio não somente com intenção de fornecer uma informação errada, mas também, de forma a determinar a vontade e a ação do indivíduo, isto é, há a intenção de induzir a vontade manifesta em outro a agir segundo os fins de meu interesse (FIGUEIREDO, 2009).
A mentira como evento do desenvolvimento humano foi estudada por Jean Piaget. Ele mostrou que a compreensão das regras necessárias ao convívio em sociedade consolida-se na mente infantil por volta dos sete anos (RIBAS JÚNIOR, 1993). A mentira funcionaria como uma brincadeira até essa fase desenvolvimental, como um teste da relação da criança com o universo que a cerca. É só a partir dos sete anos, portanto, que as mentiras infantis devem ser objeto da atenção de pais e professores.
De acordo com Ballone (2006), a maioria das pessoas pode ser classificada entre os "mentirosos fisiológicos", e as mais fisiológicas das mentiras são os falsos elogios e as denominadas popularmente "desculpas esfarrapadas"...
Mas a mentira também pode ser sintoma de transtornos mentais. Como lembra Outeiral (2004), a mentira é uma das principais manifestações analisadas pelos psicoterapeutas: os assuntos sobre os quais a pessoa mente forneceriam ótimas pistas sobre suas áreas mais problemáticas, aquilo que ela não enfrenta ou quer esconder, até de si mesma.
Em contraste com outras formas de mentiras, a mentira patológica parece ser não planejada. Questiona-se se este é sempre um ato consciente ou se o mentiroso patológico teria controle sobre suas mentiras ou não. O hábito de mentir fantasticamente pode refletir um transtorno da personalidade que alguns autores chamam de “pseudologia fantástica”, que seria caracterizado por uma compulsão a fantasiar uma vida fictícia para causar mobilização e perplexidade em outras pessoas (BALLONE, 2006).
A mentira como parte de transtornos mentais pode correr nos problemas do controle dos impulsos, da mesma forma que ocorre no jogo patológico, na cleptomania, na bulimia e na dependência química. A mentira patológica também pode ocorrer em indivíduos com transtorno de personalidade anti-social ou personalidade psicopática.
A mitomania é uma condição extrema na qual a pessoa vive frequentemente envolvida na mentira. O Dicionário de Psicanálise estabelece a seguinte definição de mitomania: "tendência, mais acentuada nos estados psicopatológicos, para criar e relatar extraordinários eventos imaginados como acontecimentos reais da vida consciente" (CABRAL, 1971).
A mentira como parte dos transtornos factícios pode ser exemplificada pela "síndrome de Munchausen". Esta é um transtorno factício no qual os pacientes simulam, exageram ou provocam uma doença. Esses transtornos são denominados de "factícios" por derivação da palavra latina que significa “artificial”, sendo transtornos psiquiátricos associados a sérias alterações emocionais. Esta entidade é caracterizada pela busca consciente e voluntária do indivíduo de permanecer a qualquer custo no lugar de doente, sem outra intenção de ganho, seja ele material ou afetivo.
Ao contrário daqueles indivíduos que simulam uma doença a fim de obter vantagens através deste comportamento, os pacientes com transtorno factício possuem o objetivo de assumir o papel de "paciente" ou de "vítima". Na literatura científica há relatos de paraplegia factícia (ARTEAGA-RODRIGUEZ, 1999), surdo-cegueira factícia (MINER; FELDMAN, 1998) e até casos de câncer de mama factício, resultando em uma mastectomia desnecessária (FELDMAN, 2001) entre outros problemas simulados.
A tendência patológica para mentir raramente fica restrita a um único evento. Além disso, a mentira patológica difere da mentira comum principalmente porque na mentira comum há um objetivo, um propósito de enganar para obter alguma vantagem, enquanto na mentira patológica não há essa finalidade. É apenas a expressão do funcionamento mental defeituoso. O mentiroso patológico é pouco reflexivo e, ao contrário do mentiroso normal, mente sem julgar o que diz, não se dando conta de que muitas vezes o que está dizendo chega a ser bizarro. Pacientes com esse tipo de transtorno muitas vezes apresentam outros problemas mentais e história de dificuldades de manter relacionamentos saudáveis. São frequentes ainda comorbidades com depressão ou abuso de substâncias psicoativas (CAMARGO; BRANDT, 2008).
Atualmente, acredita-se que há um substrato biológico para os mentirosos patológicos. O mapeamento funcional do cérebro por ressonância eletromagnética (functional magnetic resonance imaging) pode identificar áreas cerebrais ativadas nos enunciados verdadeiros e falsos, demonstrando, então, uma "evidência neurológica" da mentira.
Pesquisas apontam que o córtex pré-frontal demanda maior fluxo sanguíneo para gerar histórias inverídicas. Ao mesmo tempo, as áreas do hemisfério direito, ligadas às emoções, também são mais estimuladas no momento da mentira. Pesquisas realizadas recentemente constataram ativação bilateral no córtex pré-frontal, com variações de repartição entre as massas cinzenta e branca do cérebro, quando relacionadas a mentirosos patológicos, anti-sociais e indivíduos normais, concluindo-se que os mentirosos patológicos teriam 25,7% mais de substância branca no córtex pré-frontal que os anti-sociais e 22% a mais que os indivíduos considerados normais (CAVALCANI et al., 2006).
Sendo assim, a mentira existe ao longo de toda a escala patológica. Será que a saúde mental só é compatível com a verdade? O ato de mentir ou fingir pode ser de alguma forma justificável? Ou será que a mentira é um mal que escolhemos em plena posse da nossa saúde mental?

Referências
ARTEAGA-RODRIGUEZ, C. et al. Síndrome de Munchausen e pseudoparaplegia: Relato de caso. Arq. neuropsiquiatr 57(3B): 881-5, 1999.
BALLONE, G. J. Sobre a Mentira. PsiqWeb 2006. Disponível em: www.psiqweb.med.br. Acesso em: 03 nov 2009.
CABRAL, C. Dicionário de Psicologia e Psicanálise. São Paulo: Expressão e Cultura, 1971.
CAMARGO, A. L. L.; BRANDT, R. A. Transtornos factícios: Desafio ético. Einstein: Educ Contin Saúde. 6 (4 Pt 2): 188-9, 2008
CANIATO, A. A banalização da mentira como uma das perversões da sociedade contemporânea e sua internalização como destrutividade psíquica: o esfacelamento do processo de individuação na adolescência. In: Proceedings of the 1th Simpósio Internacional do Adolescente, 2005, São Paulo (SP), 2005. CAVALCANTI, C. E. B. et al. Correlações neurais na substância branca pré-frontal em mentirosos patológicos: "a verdade por trás da mentira" - síndrome de Pinóquio. J. bras. neurocir 17(3):121-125, 2006.
DERRIDA, J. História da mentira: prolegômenos. Estud. av. 10 (27): 7-39, 1996.
FELDMAN, M. D. Prophylactic bilateral mastectomy resulting from factitious disorder. Psychosomatics. 42:519-521, 2001.
FIGUEIREDO, N. M. Sobre um suposto direito de mentir: um paralelo entre Kant, Schopenhauer e Constant, e alguns conceitos schopenhauerianos Revista Urutágua: Revista acadêmica multidisciplinar. Disponível em: http://www.urutagua.uem.br//007/07figueiredo.htm. Acesso em: 04 nov 2009.
FIGUEIREDO J. Sobre a mentira e o mentiroso. 2008. Disponível em:
GUERREIRO, M. A. L. O dizível e o indizível: Filosofia da linguagem. Campinas: Papirus, 1989.
MINER, I.; FELDMAN, M. D. Factitious deafblindness: an imperceptible variant of factitious disorder. Gen Hosp Psychiatry. 20:48-51, 1998.
KRÜGER, I. T. Da impossibilidade de viver sem mentir. São Paulo: Pensamento Cultrix, 1998
NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
O’SEANERY, C. Workplace Deception. 2007. Disponível em:
OUTEIRAL, J. Breve Ensaio Sobre a Mentira. São Paulo: Revinter, 2004.
RIBAS JÚNIOR, R. C. Consideraçöes sobre os modelos de desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget e de Lev Semenovich Vygotsky. Arq. bras. psicol. 45 (3/4): 137-49, 1993.
SCHOPENHAUER, A. Sobre o Fundamento da Moral. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

Imagem: "Pinocchio", ilustração de Enrico Mazzanti (1852-1910).