27 de julho de 2010

Somatização

Por Gabriel Braz Garcia
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB
Resumo

Há duas concepções de doença, a experiência subjetiva do paciente de que está doente e a enfermidade orgânica. O paciente com somatização é acometido de uma desordem psicogênica, dita somatoforme, não demonstrada anatomicamente, porém causadora de desconforto importante. Os clínicos devem sempre excluir condições médicas não-psíquicas que possam explicar os sintomas do paciente aparentemente portador de transtorno de somatização. O modelo biomédico apresenta limitações para lidar com o diagnóstico impreciso representado pelos quadros de "somatização".

Palavras-chave: Somatização. Medicina psicossomática. Hipocondria. Entende-se por doença a "desarmonia orgânica ou psíquica, que, através de sua manifestação, quebra a dinâmica de desenvolvimento do indivíduo como um ser global, gerando desarmonização da pessoa" (SANTOS; SEBASTIANI, 2001).
Há duas concepções de doença: a perspectiva médica (“disease”) em contraposição à experiência subjetiva do paciente (“ilness”). Assim, o adoecimento, vivido pelo paciente, mesmo que de origem psicogênica, sem correspondência anatomo-clínica, representa uma doença.
A somatização (sintomas corporais sem causas orgânicas documentadas) é frequente na prática médica geral, apresentando sintomas físicos múltiplos que geram incapacidade nos pacientes e sobrecarga nos serviços de saúde (FLORENZANO, 2002). O paciente com esse transtorno costuma apresentar suas queixas de forma dramática, exagerada ou vaga, sendo muitas vezes rotulado de "poliqueixoso". Pacientes poliqueixosos, em geral, com distúrbios somatoformes, tendem a procurar sucessivos ou simultâneos atendimentos médicos, ou já recebeu encaminhamentos anteriores para diferentes especialistas (BARONI; OSÓRIO, 2004).
O processo de somatização, do qual resultam queixas somáticas ("soma", do grego, corpo) sem correlação orgânica, não pode ser encarado como uma questão tipo "isto ou aquilo" (BARONI; OSÓRIO, 2004). Muitos pacientes têm alguma evidência biológica de doença e respondem excessivamente aos seus sintomas. Isso quer dizer que o problema dos "somatizadores" quase nunca é totalmente psicológico ou totalmente orgânico, mas sim uma complexa combinação de ambos.
Baroni e Osório (2004) ainda afirmam que esses pacientes "somatizadores" têm sido reconhecidos há séculos, embora exista uma confusão conceitual do termo. Este é empregado em duas acepções: (1) em sentido mais amplo, incluindo histeria, conversão, doenças psicossomáticas, sintomas físicos daansiedade e da depressão e transtornos somatoformes do tipo somatização propriamente ditos; e (2) em sentido mais estrito, somente em relação aos transtornos somatoformes. Sadock e Sadock (2007) enfatizam que somatização é o fenômeno de "converter derivados psíquicos em sintomas corporais, com tendência a reagir com manifestações somáticas em vez de psiquicas" (p. 235), incluindo o quadro entre as "defesas imaturas", ou seja, como mecanismo de defesa. Conforme o DSM-IV-R (Manual Estatístico de Transtornos Mentais) da Associação Americana de Psiquiatria, a somatização caracteriza-se por um padrão de queixas somáticas múltiplas, recorrentes e clinicamente significativas (AMERICAN PSYCHIATRIC SOCIETY, 2002). Considera-se uma queixa somática clinicamente significativa aquela que desencadeia um tratamento médico ou resulta em prejuízo significativo do desempenho social, ocupacional ou em qualquer outra área importante da vida (BARONI; OSÓRIO, 2004). Os transtornos somatoformes representam um amplo grupo de doenças que têm sintomas e sinais corporais como principal componente. Dentre esses trantornos, estão o transtorno de somatização, caracterizado por múltiplos sintomas somáticos não explicados por exames físicos ou laboratoriais, relacionados a múltiplos sistemas orgânicos, como queixas gastrintestinais, cutâneas e cardiovasculares, cujo curso é crônico. Este transtorno tem prevalência estimada em 0,2 a 2% entre as mulheres e 0,2% entre os homens, iniciando-se antes dos 30 anos de idade, geralmente na adolescência (SADOCK; SADOCK, 2007).
O transtorno hipocondríaco também está incluído entre os transtornos somatoformes. Trata-se de interpretações errôneas sobre sintomas e sensações físicas, levando a preocupações e medo de terem doenças sérias, embora não se encontrem causas médicas, o resulta em sofrimento intenso e prejudica as capacidades ocupacionais e sociais.
A hipocondria apresenta um curso geralmente episódico, de duração de meses a anos, associado a eventos estressores psicossociais, seguidos de períodos quiescente igualmente longos. Correlaciona-se a diversos transtornos de ansiedade, sobretudo ao transtorno de pânico, assim como transtornos depressivos, que acentuam o status de um paciente "somatizador". Todavia, deve-se considerar como diagnóstico diferencial uma condição médica geral subjacente, desde doenças em estágios iniciais, como esclerose múltipla, tireiodopatias e miastenia gravis ou lupus eritematoso sistêmico, como condições malignas ocultas. Ademais, devem ser considerados outros distúrbios psiquiátricos, como ansiedade generalizada, fobias, depressão maior, transtorno obsessivo compulsivo e transtorno dismórfico corporal. O diagnóstico desse transtorno, contudo, quando negligenciado tende a acentuar a disfunção psicogênica, levando a uma busca médica infindável e muito onerosa ao paciente. Os clínicos devem sempre excluir condições médicas não-psíquicas que possam explicar os sintomas do paciente. Assim, a denominação "paciente-problema", muitas vezes aplicado ao paciente "somatizador", remete a uma situação diagnóstica infundada e, de certo modo, preconceituosa, considerando-se a desvalorização ao aspecto subjetivo do adoecimento. Apesar de não se identificar, no âmbito orgânico, a lesão que demonstre uma patologia, o paciente sente-se doente e deve ser tratado como tal. O enfoque terapêutico é destinado ao componente psíquico e o bom preparo clínico com diálogo amplo na relação médico-paciente são fundamentais para uma conduta efetiva. Guedes et al. (2008) chamam atenção para as limitações da biomedicina em lidar com sofredores de queixas indefinidas, tais como "a diversidade e imprecisão conceitual em relação ao uso das nomenclaturas, o despreparo dos médicos ao se depararem com esses pacientes, a demanda considerada como de ordem psíquica". O modelo biomédico hegemônico possuiria poucas ferramentas para se deparar com a singularidade do sofrimento humano e com sua dimensão subjetiva. Referências
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-IV-TR: Manual Estatístico de Transtornos Mentais. 4 ed. Rev. Porto Alegre: Artmed, 2002. BARONI, C.; OSÓRIO, C. M. S. O paciente-problema. In: DUNCAN, B.; SCHIMIDT, M. I.; GIUGLIANI, R. J. Medicina Ambulatorial: Conduta clínica em Atenção Primária. Porto Alegre: Artes Médicas, 2004. SANTOS, C. T.; SEBASTIANI, R.W. Acompanhamento psicológico à pessoa portadora de doença crônica. In: CAMOM, V. A. A. (Org.). E a psicologia entrou no hospital, São Paulo: Pioneira, 2001, p. 147-156.
FLORENZANO R. et al. Personalidad limítrofe, somatización, trauma y violência infantil: un estudio empírico. Rev. Chil. Neuro-psiquiatr. 40 (4): 335-340, 2002. SADOCK, B. J.; SADOCK, V. A. KAPLAN & SADOCK. Tratado de Psiquiatria: Ciência do Comportameto e Psiquiatria Clínica. 9ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2007. GUEDES, C. R. et al. Os sintomas vagos e difusos em biomedicina: uma revisão da literatura. Ciênc. saúde coletiva, 13 (1): 135-144, 2008. Crédito da Imagem: www.parentingteens.com