24 de fevereiro de 2011

Falácia Semiológica: "a doença como uma realidade concreta"

"Há erros mortos, como há mortas verdades." (SARTRE, 1948)

Uma falácia é um defeito lógico que torna um argumento inválido. Argumentos falaciosos frequentemente parecem convincentes, mas a uma inspeção mais atenta revelam-se falsos. Encontramos falácias no texto abaixo, transcrito do livro de Lucchesi e Ledur (2008):
A Medicina é uma ciência e, como tal, caracteriza-se pela objetividade. A doença, igualmente, é uma realidade concreta, e por isso, deve ser enfrentada com ações objetivas. Não há, portanto, lugar para tergiversações, subjetivismos. (LUCCHESI; LEDUR, 2008, p. 29).
Contestando os argumentos falaciosos do trecho acima: A Medicina é ciência e arte; a doença é uma abstração; há sempre lugar para subjetivismo na Medicina.
Mesmo diante das mudanças paradigmáticas que têm ocorrido no pensamento ocidental quanto ao processo de adoecer, ainda se costuma desconhecer a subjetividade do paciente. Como afirma Botelho (2004), existe uma persistência para diminuir a abstração e aumentar a materialidade do processo saúde-doença.
O pensamento médico atual vive o curioso paradoxo de considerar objetivo o que é, em essência, uma abstração - a doença -, enquanto relega ao espaço secundário da subjetividade aquilo que é especificamente humano no adoecer, o sofrimento dos pacientes (CAMARGO JR., 1999) A linguagem da doença não é apenas a linguagem em relação ao corpo, mas à sociedade e às relações sociais. Seja qual for a dinâmica efetiva do 'ficar doente', no plano das representações, o indivíduo julga seu estado, não apenas por manifestações intrínsecas, mas retira atitudes e comportamentos em relação ao seu estado e assim se torna doente para o outro, para a sociedade. É preciso ter a capacidade de enxergar e de entender o paciente-pessoa, o paciente com seus valores (MINAYO, 1991). Segundo Pessotti (1996), é necessário que o médico conheça a essência da chamada natureza humana: a criação de valores, a atribuição de significado e sentido aos eventos e condições da vida.” A permanente presença da doença e do sofrimento no cotidiano das pessoas tem gerado a tendência natural de pensar a saúde em termos de - ausência de doença -, ou seja, como ausência de sinais objetivos de que o corpo não está funcionando adequadamente, e/ou de sintomas subjetivos de mal-estar, doença ou lesão.
Sofrimento e doença não se reduzem a uma evidência orgânica, natural, objetiva, mas estão intimamente relacionados com as características de cada contexto sócio-cultural. Existe toda uma ordem de significações culturais socialmente construídas, que influenciam o uso que cada indivíduo faz do seu corpo, bem como as formas pelas quais cada pessoa experimenta os seus estados de saúde e doença, a expressão dos sintomas, assim como os hábitos e estilos de vida e as próprias práticas de atendimento à saúde (TRAVERSO-YEPEZ, 2001). Muitos diagnósticos nosológicos em medicina não podem ser estruturados através dos critérios considerados objetivos, como a identificação de uma lesão/disfunção ou reconhecimento de uma causalidade. Há constantemente nos ambulatórios uma demanda de sofrimentos que estão, muitas vezes, permeadas por questões de ordem social, psíquica ou moral, não enquadráveis nos diagnósticos possíveis do modelo biomédico (GUEDES et al., 2008). Quanto mais o médico enfatiza o órgão doente e não a pessoa, menos chance terá de entender os sintomas do paciente. A desconsideração da subjetividade e da experiência de vida do paciente implica também uma série de consequências negativas para o relacionamento profissional-paciente/cliente. Essa relação está alicerçada na crença de que é somente o profissional de saúde, e não o próprio usuário, que sabe a respeito do seu estado de saúde ou doença (TRAVERSO-YEPEZ; MORAES, 2004). A subjetividade do adoecimento, isto é, a complexidade e a singularidade do sofrimento humano, e mais ainda, a sua dimensão fenomenológica, experiencial, nunca chegou a ser objeto das ciências biomédicas, uma vez que o modelo da medicina ocidental é herdeiro da racionalidade científica moderna.
Nem todas as manifestações da doença podem ser explicadas a partir do modelo doença-lesão e seus correspondentes; e aquelas que não se encaixam nos referenciais da biomedicina tornam-se um problema para o diagnóstico, colocando em xeque o saber médico, já que estes pacientes possuem persistentes sintomas físicos sem que o médico possa detectar uma doença (GUEDES et al., 2006). Portanto, sendo o adoecer um processo singular, uma experiência única, que apresenta tantos aspectos objetivos como subjetivos, ambos importantes, não se pode ver esse processo de forma linear e cartesiana. 

Referências 
BOTELHO, J. B. História da Medicina: da abstração à materialidade. Manaus: Valer, 2004. 
CAMARGO Jr, K. R. Em defesa da arte de curar. Ars Cvrandi, 32 (8): 3-7, 1999, p. 7. MINAYO, M. C. S. Um desafio sociológico para a formação médica: Apresentações sociais de saúde-doença. R Bras Educ Med, 15 (1): 25-32, 1991. 
GUEDES, C. R.; NOGUEIRA, M. I.; CAMARGO JR., K. R. Vague and diffuse symptoms in biomedicine: a review of the literature. Ciênc. saúde coletiva 13 (1): 135-144, 2008
GUEDES, C. R.; NOGUEIRA, M. I.; CAMARGO JR., K. A subjetividade como anomalia: contribuições epistemológicas para a crítica do modelo biomédico. Ciênc. saúde coletiva, 11 (4): 1093-1103, 2006.
LUCCHESI, F. A.; LEDUR, P. F. Comunicação Médico-Paciente: Um Acordo de Cooperação. Porto Alegre: AGE, 2008. 
PESSOTTI, I. A formação humanística do médico. Medicina, Ribeirão Preto, 29: 440-448, 1996 
TRAVERSO-YEPEZ, M.; MORAIS, N. A. Reivindicando a subjetividade dos usuários da Rede Básica de Saúde: para uma humanização do atendimento. Cad. Saúde Pública, 20 (1): 80-88, 2004. 
TRAVERSO-YEPEZ, M. A interface psicologia social e saúde: perspectivas e desafios. Psicol. estud. 6 (2): 49-56, 2001. 

Imagem: Obra "Exploding Raphaelesque Head", de Salvador Dali (1951)