Figura 1- Reprodução de "ambiente pantanoso", preparada pelos alunos apresentadores do seminário de hoje: Alusão a um dos fatores ambientais mais relacionados aos supostos "miasmas"
Figura 2- Representação preparada pelos alunos em sala de aula: Referência aos experimentos realizados no século XVIII para testar hipóteses em busca de explicação da etiopatogenia de doenças infecciosas
Figura 3- Montagem dos alunos com relação aos experimentos realizados por Joseph Priestley (1733-1804) na década de 1770, envolvendo combustão, animais e plantas em recipientes fechados
[...] Tudo é escuridão e confusão, teorias vagas, uma vã especulação. É um fungo, um inseto, um miasma, uma perturbação elétrica, uma deficiência de ozônio, uma mórbida falta de limpeza do canal intestinal? Não sabemos nada, estamos no mar, em um redemoinho de conjecturas"
Thomas Wakley, editor da The Lancet, a respeito da confusão que existia sobre a etiopatogenia da cólera, em um editorial de 1853, quando ele levantou a questão: O que é a cólera? (T. Wakley. The Lancet, 393, 1853)
O Seminário de hoje teve como tema a "Teoria Miasmática das Doenças", com apresentação de Klícia, Duana, Luiz Gonzaga, Igor Neves, Luiz Eduardo e Juliana, alunos do terceiro período do curso de graduação em Medicina da UFPB, cumprindo os créditos referentes ao módulo de História da Medicina e da Bioética (MHB3).
Os apresentadores prepararam uma ambientação na parte anterior da sala de aula, com representação de um "pântano" (Figura 1) e de experiências realizadas nos séculos XVIII e XIX em busca de explicações da etiopatogenia das doenças infecciosas (Figuras 2 e 3), e em plena vigência da hegemônica Teoria Miasmática e do início do desenvolvimento de Teoria Microbiana. Uma fase de dúvidas e de embate de ideias, que também continham umamescla de idéias novas e antigas, na tentativa de explicação do contágio. Houve intenso debate na época, sobretudo em meados do século XIX, sobre a origem das doenças infecciosas.
A apresentação foi iniciada por Klícia que, a título de introdução, mostrou a conceituação de Miasmas, palavra derivada do grego "poluição", e relembrando informações já vistas no módulo, também sobre a falta de limpeza e de saneamento após a queda do Império Romano. Apresentou a parte introdutória do capítulo 8 do livro de Martins (1997), "Contágio: História da prevenção das doenças transmissíveis", sob o subtítulo "cheiros, gases e a prevenção de doenças".
Klícia mencionou que a teoria miasmática das doenças começou a ser cogitada na Antiguidade, tendo prosseguido na Idade Média, chegando até meados do século XIX, quando foi usada para explicar a propagação da cólera. Assim, essa crença data, pelo menos, da Grécia Clássica no quarto ou quinto século a.C., tendo persistido, ao lado de outras teorias e modelos para a causa da doença. Em certa medida, a crença perdura até hoje. Foi mais claramente enunciada pelo médico italiano Giovanni Lancisi (1654-1720), em seu livro De noxiis effluviss paludum ("Dos efúvios venenosos da malária", 1717) (LAST, 2010).
Realmente, atribui-se a Hipócrates os primeiros registros, no Ocidente, da relação entre doença e espaço urbano: sua obra “Dos ares, dos mares e dos lugares” (480 a.C) trata da influência da situação das cidades, da natureza dos solos, dos tipos de águas, dos ventos e dos modos de vida, sobre a saúde e a doença na população (RODRIGUES et al., 2005).
Luiz Gonzaga continuou a apresentação, detalhando a Teoria Miasmática, mencionando figuras destacadas no pensamento sobre a origem das doenças naquela época, como John Pringle (1707-1782), que conseguiu uma significativa queda da mortalidade nos hospitais militares, através da limpeza dos ambientes hospitalares e de uma melhor ventilação.
Depois, apresentou as ideias do naturalista Joseph Priestley entre 1774 e 1777, com suas experiências mostrando que "quando se coloca uma vela acesa em um recipiente fechado, no qual exista um pequeno animal vivo, a vela logo se apaga e o animal morre". As Figuras 2 e 3 representam essa experiência atribuída ao químico Joseph Priestley.
Até o início do século XVIII, acreditava-se que o ar era uma substância simples, inexistindo ainda o conhecimento de que a atmosfera continha gases distintos. Não se sabia também o que ocorria na combustão de substâncias, nem por que motivo uma vela se apagava em um recipiente fechado. Não existia sequer o conhecimento sobre a química da respiração (MARTINS, 2009).
Luiz Gonzaga prosseguiu, referindo-se ao livro "Elementos de Higiene", publicado pelo médico luso-brasileiro Francisco de Mello Franco em 1814, e em que se discutem as características do ar, levando em conta algumas das novas descobertas. Salientou Gonzaga que havia uma mistura de novas e antigas ideias, além do reaparecimento da crença de que a supressão da transpiração era perigosa para a saúde.
Ao término de sua parte do seminário, Luiz Gonzaga concluiu com uma frase bastante significativa no contexto da Teoria Miasmática: "A teoria dos miasmas foi útil, sem ser correta". Como isso, ressalta-se uma contribuição positiva da referida teoria, vista não apenas como um erro e como ideia não científica, mas também como parte integral da perspectiva sanistarista do século XIX, segundo Armstrong (1996). Adotaram-se medidas de limpeza para evitar os efeitos dos miasmas, mas, com isso, conseguiu-se afastar, em parte, a ação de micróbios.
Fora do texto indicado como base para o seminário, Luiz Gonzaga pesquisou sobre o Padre Anastácio Kircher, um dos pioneiros dessa teoria, intelectual e curioso pelo universo científico, e que no século XVII, quando do aparecimento dos primeiros microscópios, teceu análises iniciais sobre as doenças contagiosas, mais especificamente a respeito da Peste Negra. Padre Kircher, como era mais conhecido, acreditava que substâncias e objetos podiam produzir continuamente partículas pequenas e invisíveis que eram perceptíveis apenas pelas suas propriedades olfativas.
Duana prosseguiu na apresentação do seminário, mostrando as dúvidas e o embate de ideias entre estudiosos do século XIX, como Bretonneau, Gendron e Bullard. Juliana, por sua vez, mencionou as ideias de Forcault, Broussais e Magendie.
Igor Neves passou a apresentar, então, a concepção de miasmas na homeopatia. Samuel Hahnemann (1755-1843), fundador da homeopatia, teve considerável influência no início do século XIX. A principal obra em que suas ideias foram divulgadas foi o "Organon da arte de curar", publicado em 1810. Igor Neves falou também sobre os três principais miasmas: "Psora", "Sycose" e "Syphilis". Estes não foram mencionados no texto base do seminário, tendo sido pesquisados independentemente por ele.
O autor do livro "Contágio" não menciona, contudo, que, na perpectiva homeopática, os miasmas eram concebidos em outra acepção, diferente da que já foi referida. A diversidade de acepções da Teoria Miasmática indica que a mais antiga teria sido a do “miasma atmosférico”, o primeiro elemento natural a ser considerado como meio transmissor das enfermidades. Em sua obra “Doenças crônicas” (1830), Samuel Hahnemann apresentou suas observações sobre as doenças crônicas, considerando-as, em sua grande maioria, expressões dos três “miasmas crônicos”, referidos acima.
Embora Hahnemann, nessa obra, nada afirmasse sobre a natureza dos miasmas, referiu-se à natureza “miasmática” das doenças crônicas, fazendo descrições e explicando suas causas. Ele não concebia miasmas como eflúvios maléficos provenientes do ambiente físico externo, mas como eflúvios provenientes do interior do organismo (RODRIGUES et al., 2007).
Portanto, na Homeopatia, os miasmas eram interpretados simplesmente como níveis de reações fisiológicas apresentadas pelo organismo diante de uma "noxa" (influência hostil). Nesta perpectiva, miasma seria uma série de sintomas decorrentes dos mecanismos defensivos do organismo, especialmente da eliminação, neutralização, conservação e cicatrização. Miasma, em suma, nada mais era, segundo Hahnemann, do que um estado orgânico resultante dos próprios mecanismos de cura (EGIPTO, 1989).
Para encerrar a apresentação do seminário, Luiz Eduardo protagonizou, com a ajuda de Duana e Luiz Gonzaga, a encenação de um debate, em analogia a uma discussão pública entre candidatos a eleição, expediente tão conhecido no nosso tempo. A maneira criativa de terminar o seminário afugentou, de certo modo, a monotonia, despertando muitos colegas que assistiam à apresentação. A discussão entre partidários das duas teorias oponentes ("Partido da Teoria Miasmática das Doenças", PTMD, e o "Partido da Teoria Microbiana", PTM), teve como mediador, Luiz Gonzaga, que voltou à apresentação do seminário.
Assim, apresentaram-se argumentos favoráveis e contrários à Teoria Microbiana, indicando evidentemente que esta última tinha elementos explicativos mais bem fundamentados do ponto de vista empírico e mais consistentes do ponto de vista lógico, enquanto a primeira, hegemônica na época, ao contrário, não mostrava uma argumentação objetiva, mas apenas atacava os argumentos da nova teoria.
O mediador do referido "debate", finalizou, então, afirmando que a conclusão do embate foi de que a força da Teoria Miasmática mantinha-se vigente, embora já houvesse suficiente evidência empírica da veracidade da Teoria Microbiana. Isso indicou, simbolicamente, a resistência que foi imposta aos defensories da Teoria Microbiana naquela época, e que foi uma importante mudança de paradigma na área do conhecimento referente à etiopatogenia das doenças infecciosas.
Encerrada a apresentação, deu-se início à discussão, com abertura aos comentários, questionamentos e complementações da turma. Fizeram questionamentos Maísa, Marise, Rebecca, Jose Jeymesson, Laise, Paloma, Ádila, Bruno Felipe, Raissa, Bruno Carreiro, Artur e Sarah. Os colegas elogiaram a apresentação.
Os principais questionamentos foram referentes a quando, exatamente, a Teoria Microbiana passou a ser aceita e como se consolidou (Maísa, Bruno Carreiro), a posição da Igreja diante das teorias miasmática e microbiana (Rebecca, Paloma e Raissa), a natureza atribuída aos "corpúsculos invisíveis" (José Jeymesson), a "hipertrofia do eu" [fragmento mencionado durante a apresentação da concepção homeopática] (Laíse), teoria da geração espontânea (Artur) e a ideia de que os miasmas erama penas as emanações fétidas dos pântanos em contraposição à acepção de que miasmas eram emanados também em outros ambientes (Bruno Felipe).
Esta última intervenção foi importante porque esclareceu que a teoria dos miasmas explicava não apenas as enfermidades relacionados aos pântanos propriamente ditos, mas também as doenças produzidas por cheiros de coisas estragadas e em putrefação. A "malignidade" do ar provinha de qualquer emanação pútrida ou odor fétido do ambiente, mesmo no ambiente urbano. A palavra miasma foi utilizada no sentido de descrever um tipo específico de agente ou elemento contagiante que fluía pelos ares causando as doenças.
Havia, portanto, uma concepção "alargada" de miasma, a partir das originais emanações pantanosas tóxicas, pois todas as substâncias no reino animal, vegetal e mineral eram passíveis de produzir emanações de partículas, contendo cada uma seus elementos próprios. A abordagem miasmática referia-se genericamente a "coisas que cheiravam mal".
Por outro lado, como afirmou Artur, até o século XIX imaginava-se que os seres vivos poderiam surgir a partir da matéria bruta, de uma forma espontânea. Essa ideia, proposta há mais de 2000 anos por Aristóteles, era conhecida por geração espontânea ou abiogênese. "Os defensores dessa hipótese supunham que determinados materiais brutos conteriam um princípio ativo, isto é, uma força capaz de comandar uma série de reações que culminariam com a súbita transformação do material inanimado em seres vivos", disse ainda Artur, demonstrando que já estudou seu tema no próximo seminário do módulo.
A bacteriologia estava sendo discutida desde a década de 1850, mesmo não tendo sido aceita – ou entendida – como verdade científica; em 1894, a medicina já estava bastante próxima da aceitação mais generalizada da Teoria Microbiana. Foi somente com as ideias de Louis Pasteur que a Teoria Miasmática passou a ser completamente desafiada.
A Teoria da Geração Espontânea, como afirmou Artur, foi derrubada no final do século XIX, e será mencionada no próximo seminário (Desenvolvimento da Teoria Microbiana das Doenças). O final do século XIX é considerado um marco histórico na decadência da Teoria Miasmática e ascensão da Teoria Microbiana. Pode-se afirmar, contudo, que a hegemonia dessa última contribuiu para o abandono das questões ambientais na saúde pública, desconsiderando o ambiente como um todo (RODRIGUES et al., 2007).
Mencionei também a o aspecto relacionado ao crescimento desordenado das cidades pelo processo de industrialização, levando ao superpovoamento dos cemitérios, ocasionando, presumivelmente, o excesso de produção de miasmas e, por conseguinte, a alteração da qualidade do ar, segudo a Teoria Miasmática. Segundo Mastromauro (2010), a cremação dos cadáveres de pessoas que morreram de doenças epidêmicas naquele momento histórico tem sua fundamentação na Teoria Miasmática. A cremação seria, então, uma solução para diversos problemas contemporâneos como, por exemplo, a ocupação desnecessária do solo devido ao enorme crescimento das cidades, e de outros problemas de higiene. Porém, no século XIX, a ideia era eliminar completamente um dos que se acreditava ser o foco produtor de doenças, ou seja, os cadáveres em putrefação.
Muitos médicos eminentes daquela época estavam convencidos de que a epidemia de cólera do século XIX foi causada por miasmas. Lembrei, por isso, de figuras que não foram referidas durante o seminário, como William Farr, o comissário para o censo demográfico de Londres em 1851, e que foi um importante apoiador da Teoria Miasmática. Ele acreditava que a cólera era transmitida pelo ar, e que havia uma concentração letal de miasmata perto do rio Tâmisa. A ampla aceitação da Teoria Miasmática durante os surtos de cólera ofuscou a teoria trazida por John Snow, de que a cólera se espalhava através da água. Isso retardou a solução dos focos principais do vibrião colérico em Londres e em outras áreas.
William Farr declarou firmemente em seu relatório anual sobre as estatísticas vitais na Grã-Bretanha, em 1852, que a associação inversa da mortalidade por cólera com elevação acima do nível do mar, confirmavam a Teoria Miasmática como sua causa.
William Farr rejeitou o argumento de John Snow, que se baseava em evidências e raciocínio lógico, de que a cólera era causada por água contaminada. Embora se tenha provado que a Teoria Miasmática era uma explicação errada para a causa da cólera, ela ainda foi parcialmente sustentada como uma explicação para a malária. Algumas medidas de controle da malária, baseadas na Teoria Miasmática, sobretudo drenagem de pântanos e brejos, fazem parte das estratégias de controle moderno, embora não, naturalmente, porque miasmas causam a malária, mas porque os criadouros do mosquito eram eliminados.
Também é necessário fazer menção ao italiano Giovanni Lancini, que já foi citado no início deste relatório. O autor do livro "Contágio" refere-se a Lancisi no capítulo 6 ("Do Período das Grandes Descobertas ao Século XVIII"), afirmando que as "febres produzidas pelos pântanos foram por Giovanni Maria Lancisi (1654-1720)".
Giovanni Lancisi foi um importante médico romano, e publicou em 1717 o livro "Os eflúvios nocivos dos pântanos e seus remédios". Nesse livro, ele descreve os "miasmas" como certas influências nocivas emanadas dos pântanos. Segundo Lancisi, essa influência é geral e não específica, ou seja, um único tipo de miasma pode produzir diferentes efeitos, dependendo das circunstâncias e das pessoas atingidas por ele.
Outra defensora da Teoria Miasmática foi a eminente enfermeira da Guerra da Criméia, Florence Nightingale (1820-1910), que ficou famosa por seu trabalho de tornar os hospitais mais limpos e com melhor cheiro, através da higienização e da ventilação. Ela incentivou a limpeza e pavimentou o caminho para uma reforma sanitária. Assim, a pioneira Florence Nightingale acreditava firmemente na existência de miasmas e tornou-se célebre por seu trabalho.
Ficou claro também, no seminário, que a Teoria Miasmática contribuiu para que os cientistas se interessassem pelo estudo da decomposição da matéria e, possivelmente, isso também levou à identificação de micróbios como agentes de doenças infecciosas.
Referências
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EGIPTO, J. L. Visao fisiopatologica da teoria miasmatica. Rev. homeopatia (São Paulo). 54(4):104-7, dez. 1989.
LAST, J. Miasma Theory. 2010. Disponível em: http://www.enotes.com/public-health-encyclopedia/miasma-theory. Acesso em 18 abr 2010.
MARTINS, R. Os estudos de Joseph Priestley sobre os diversos tipos de ares e os seres vivos. Filosofia e História da Biologia, 4: 167-208, 2009.
MARTINS, R. A. Contágio: História da prevenção das doenças transmissíveis. São Paulo: Moderna, 1997. Disponível em: http://www.ifi.unicamp.br/~ghtc/Contagio/. Acesso em: 02 ago. 2010. Capítulo 8: http://www.ifi.unicamp.br/~ghtc/Contagio/cap08.html. Acesso em: 18 abr. 2010.
MASTROMAURO, G. C. A importância das teorias higienistas e a formação das instituições de Saúde Pública em São Paulo em 1880-1890. In: Anais do XIV Encontro Regional da ANPUH-Rio. Disponível em: http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276698746_ARQUIVO_Giovana-artigoriodejaneiroanpuh2010.pdf. Acesso em: 18 abr. 2010.
RODRIGUES, Z. M. R.; TROVÃO, J. R.; VARGAS, I. V. Geografia da Saúde e o Espaço Urbano de São Luís-MA: Interfaces da relação saúde e ambiente no período de 1854–1954. Ciências Humanas em Revista - São Luís, 3 (1): 47-65, 2005.