A Clínica é
Soberana para o Médico Moderno?
A clínica é soberana sobretudo no ato do médico de prestar
real atenção ao que o doente narra.
Texto do GESME publicado na Revista "Cooperando", da Unimed/Natal, RN. Ano X, n. 117, Jan/Fev/Mar 2012, seção Artigo Médico.
“A clínica é soberana” é uma antiga máxima repetida
em todas as escolas médicas. Para começar
este texto, esta expressão um pouco desgastada será substituida por um
questionamento mais concreto: a arte do ouvir o paciente ainda é valorizada pelo
médico moderno?
O adoecimento é um fenômeno integral que reflete a
biografia do indivíduo. Um conjunto de reações do doente faz com que a mesma
úlcera gástrica seja uma afecção distinta entre dois pacientes diferentes. Esta
singularidade surge e se concretiza no próprio ato de narrar.
Para perceber isso, é necessário seguir o fio da
narrativa de cada pessoa, buscar sentido em sua linguagem, compreender o
significado dos seus relatos e considerar a doença pela perspectiva do doente. Ele
pode se sentir doente, mas sua enfermidade não ser evidenciada de forma
objetiva. Assim, os métodos de exame complementar, reputados como objetivos,
esgotam-se rapidamente, caso não sejam fundamentados e interpretados mediane um
conhecimento subjetivo do estado do paciente.
O que seria exatamente a tão propalada “arte de
ouvir o paciente”? Ouvir faz parte do ato de comunicação entre médico e
paciente. Isso significa prestar atenção de forma plena, sem preconceitos, à narrativa
deste. A maioria de nós, médicos, não está mais muito preocupada em ouvir o
paciente, e sim em falar. Esse aspecto é fundamental porque “será o
paciente quem dirá o seu diagnóstico”, ou seja, é atitude de escuta e atenção do médico que determinará as
possibilidades de expressão do seu paciente.
É justamente nesta tarefa de se constituir um ouvinte interessado que reside
o maior obstáculo para se obter uma história clínica significativa. Contudo, atualmente
diminuiu o número de horas dedicado ao paciente. Defrontado com a falta de
tempo para o atendimento de filas, cada vez maiores nos ambulatórios, o médico,
especialmente aquele assalariado em serviços públicos, não tem mais tempo para
ouvir, ou simplesmente não querem mais ouvir o seu paciente. Essa redução do
tempo dedicado à clínica tem sido considerada uma das principais causas da
perda de qualidade do trabalho médico e de insucesso na interação
médico-paciente.
A anamnese inexpressiva, cada vez mais restrita e superficial, resulta na
incapacidade de se alcançar o diagnóstico clínico do paciente. Restará, então,
ao médico, aturdido, mas encantado pelos avanços da tecnologia, recorrer excessivamente
aos exames laboratoriais e de imagem como melhor recurso para descobrir o problema
do seu paciente.
Mas, não é a técnica, e sim a arte médica que permanecerá perene, como se afirma
no aforisma latino “a arte é eterna, a vida é breve”. O método clínico
caracteriza-se pela sua incomparável possibilidade em proporcionar ao médico a
habilidade de ver o paciente como um todo, e por isso possui uma grande
sensibilidade. Embora os exames complementares adquiram especificidade cada vez
maior, a técnica jamais predominará sobre a arte: exames complementares de nada
adiantarão se não houver a apropriada correlação com a clínica do paciente.
Portanto, aqueles que ainda consideram que a máxima “a clínica é soberana” é
apenas um chavão podem se enquadrar no grupo cada vez maior de “médicos
modernos”, que contribuem para a desvalorização da profissão médica e do
próprio paciente.