6 de janeiro de 2013

A Mão na Hanseníase

Jailson Sousa de Oliveira
Médico Recém-Graduado pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Arthur Bastos Rocha
Estudante do Curso de Graduação em Medicina da UFPB

Resumo
A hanseníase é uma doença infecciosa crônica provocada pelo Mycobacterium leprae, e que promove um acometimento neural e cutâneo em diversas formas clínicas. O comprometimento da função nervosa pode, em combinação a traumas repetidos, resultar em deformidades importantes e grande limitação da capacidade funcional das mãos. Dentre as principais anormalidades das mãos em pacientes com hanseníase, destacam-se as paralisias dos nervos cubital, mediano e radial, "garras digitais", ausência de dedos por amputação traumática ou espontânea, retração dos dedos por absorção das falanges, além das úlceras palmares. A hanseníase tem no diagnóstico precoce uma das bases para seu controle efetivo, quanto mais precoce o diagnóstico e o tratamento da hanseníase, menores serão os riscos de sequelas e o período de contágio da doença.

Palavras-chave: Hanseníase. Deformidades. Mãos.

A hanseníase é uma doença infecciosa crônica causada pelo Mycobacterium leprae, e que se manifesta por lesões na pele e nos nervos periféricos. A predileção pela pele e nervos periféricos confere características peculiares a esta enfermidade, tornando o seu diagnóstico simples na maioria dos casos. O dano neurológico leva às sequelas, muitas vezes graves, que podem surgir, no curso da hanseníase (RODINI et al., 2010).
A hanseníase constitui um  importante problema de saúde pública no Brasil e em vários países do mundo. Ainda é considerada como um problema mundial comum, com 750.000 novos casos diagnosticados a cada ano, sendo endêmica no Brasil, onde se registram, em média, 47 mil casos novos por ano; assim, o Brasil é o país que tem o segundo maior número absoluto de casos no mundo. Cerca de 30% dos pacientes já apresentam danos estabelecidos nos nervos ao momento do diagnóstico, e problemas ortopédicos podem se desenvolver mesmo depois de o tratamento com antibióticos ter sido realizado com êxito bacteriológico. Complicações ortopédicas da lepra incluem arquitetura óssea alterada, levando a tensão repetidas por traumas locais que, em combinação com os danos nos nervos periféricos, causam úlceras frequentes (RODINI et al., 2010; MOONOT et al., 2005; ARAÚJO et al., 2003).
Estimativas indicam que cerca de dois a três milhões de indivíduos no mundo tenham algum grau de incapacidade funcional como resultado dessa doença. A infiltração dos nervos periféricos pelo M. leprae inicia uma cascata de eventos destrutivos com edema intraneural e destruição de axônios por células TCD4. A função a longo prazo do nervo afetado é determinada efetivamente pela duração da doença e do nível de prejuízo do nervo no momento do diagnóstico e início da terapia (RODINI et al., 2010; ANDERSON, 2006).
A infecção evolui de modos variados conforme a resposta imunológica do hospedeiro frente ao bacilo. Esta resposta imune constitui determina as diferentes formas clínicas da doença. Com uma resposta imunológica competente, o indivíduo evolui para a forma clínica localizada e não-contagiosa da doença; se esta competência não é efetiva, uma forma difusa e contagiosa é desenvolvida. Entre estes dois extremos, encontram-se as formas intermediárias, que refletem, também, graduais variações da resistência ao bacilo (LOMBARDI; FERREIRA, 1990).
Apesar de hoje ser uma doença com cura possível, a hanseníase quando não diagnosticada e tratada precocemente, pode evoluir com diferentes tipos e graus de incapacidades físicas envolvendo mãos, pés e face. A predileção do bacilo causador da hanseníase por instalar-se em pele e seus anexos e nos nervos periféricos, é o que precipita todo o processo incapacitante (GARBINO, 1991).
As neuropatias são alterações prevalentes no quadro clínico da doença, podendo ser a única manifestação clínica, podendo ainda ser silenciosas, nas quais o dano funcional do nervo se instala sem quadro clínico de dor e espessamento do tronco neural. O nervo mais comprometido nos membros superiores é o ulnar com área crítica ao redor do cotovelo, seguindo do mediano em prevalência. Nos membros inferiores o nervo fibular comum é o mais acometido, seguido do tibial posterior. Já no segmento cefálico o nervo facial é o mais prevalente, acompanhado do auricular magno (AGRAWAL et al., 2005).
Os nervos dos membros superiores são citados como os mais precocemente afetados em relação aos membros inferiores. Nos membros superiores observa-se certa ordem de inicio do acometimento e frequência, os nervos radial superficial e o ulnar, ramos sensitivos, vêm em primeiro lugar seguidos do ulnar, motor e sensitivo no cotovelo, o nervo mediano, no punho, e por último, e em menor frequência, o nervo radial no braço (MARCIANO; GARBINO, 1994). A apresentação clínica do acometimento dos nervos do membro superior é de acometimento distal, com evolução gradual para déficits proximais. No exame físico observa-se acometimento primário da mão, devendo ser alvo de investigações na suspeita de hanseníase, para evitar o acometimento neural e sequelas prováveis.
O acometimento primário mais prevalente é do nervo ulnar, e na evolução temporal da patologia ocorre perda da sensibilidade térmica dos pacientes, evoluindo então para a sensibilidade álgica, pela espessura das fibras mielínicas mais adelgaçadas nas fibras sensitivas. Ao exame o paciente pode apresentar-se com uma lesão vesico-bolhosa, em geral com perda de sensibilidade nas adjacências da lesão. A lesão do nervo periférico reduz o trofismo do órgão efetor, levando a diminuição do controle de nutrientes e favorecendo a processos de necrose celular no epitélio deste paciente, além da resposta inflamatória que pode estar exacerbada, cursando com destruição dos tecidos da pele, mais característico nas reações hansênicas.
A reação inflamatória também pode levar a edemas, perilesionais ou em articulação de punho e cotovelo. O acometimento de fibras álgicas pode levar a dores de intensidade elevada de acordo com o grau de extensão, uma das queixas do paciente. Pode haver ulcerações nesta região pela perda dos reflexos de retirada e proteção, sujeitando a região a maior traumas.  Com o avanço da doença sem tratamento, ocorre então comprometimento das fibras motoras, que são mais espessas, ocasionando quadros de déficit motor, entre eles o mais clássico é o da mão em garra, com paralisia do quarto e quinto quirodáctilos. Se não houver abordagem terapêutica adequada este paciente poderá evoluir com acometimento do nervo mediano, levando a paralisia completa da mão, a chamada “mão simiesca”. Caso o nervo acometido inicialmente seja o nervo mediano, o paciente desenvolve uma paralisia chamada “mão em garra”, com plegia do terceiro, segundo e primeiro quirodáctilos. Caso o nervo radial, mais raramente acometido, seja lesionado, o paciente cursa com paralisia da musculatura extensora, levando a “mão caída”. Nestes casos é comum haver ao longo do tempo espessamento do nervo e atrofia da musculatura pela redução do trofismo celular mediado pelos nervos periféricos.  
Contudo, ao exame da mão, percebe-se geralmente que o nervo ulnar é o mais acometido pela síndrome compressiva que ocorre resultante do edema neural associado ao processo inflamatório culminando com o espessamento do epineuro, que é inelástico e impermeável, associado ao ponto crítico anatômico que é a sua passagem pelo sulco ulnar do epicôndilo medial do úmero. Este conjunto de fatores levam a aumento da pressão intraneural que comprime o seu axônio e gera as alterações no corpo celular e sofrimento neuronal, gerando a fisiopatologia e quadro clínico descrito. Em casos onde a reação inflamatória é muito exacerbada, pode-se constatar a presença de troncos nervosos espessados palpáveis e que seguem o trajeto do nervo, especialmente o nervo ulnar por ser mais superficial em alguns pontos (JAMBEIRO et al., 2008).
As deformidades e as incapacidades que são encontradas nas mãos de pacientes com hanseníase decorrem de três fatores principais: alterações de sensibilidade, alterações de motricidade e estados imuno-inflamatórios.  Ainda que a distribuição do bacilo pelos nervos seja difusa, alguns destes se apresentam especificamente mais acometidos, e no membro superior, estes são o cubital, mediano e radial, nesta ordem (DUERKSEN; VIRMOND, 1997).
As principais deformidades encontradas nas mãos de pacientes com hanseníase incluem além das paralisias dos nervos cubital, mediano e radial; amiotrofias das regiões tenar e hipotenar e dos interósseos; garras digitais, ausência de dedos por amputação traumática ou espontânea; retração dos dedos por absorção das falanges e úlceras palmares (CAMPOS-PATRONY et al., 1978).
Há comprometimento de nervos sensitivos e autonômicos da pela nas formas precoces de hanseníase, assim como nas manchas hipocrômicas, hipoestésicas e anidróticas. Em formas clínicas mais avançadas, a neuropatia caracteriza-se como mononeuropatia múltipla (GARBINO, 1991).
A perda da sensibilidade térmica ocorre inicialmente, seguida da dolorosa e terminada pela tátil. A falta de sensibilidade protetora inicia um processo cíclico de destruição da mão, o qual é alimentado pela perda do reflexo natural de imobilização que se segue a um trauma. Dessa forma, o paciente se sente em condições de continuar a usar seu segmento mesmo traumatizado, aumentando a extensão do dano, principalmente em profundidade (DUERKSEN; VIRMOND, 1997).
A paralisia do nervo cubital tem como principal deformidade a mão em garra, também chamada de "garra cubital”, correspondendo à hiperextensão das articulações metacarpo falangeanas do quarto e quinto dedos, com flexão de suas interfalangeanas. Pela falta de musculatura intrínseca, estabilizando as articulações metacarpofalangianas, ocorre o esgotamento do poder de tração dos tendões extensores ao nível destas articulações, impedindo que as articulações mais distais se estenda (Op. Cit.).
A paralisia do nervo mediano ocorre após a paralisia do nervo cubital, gerando uma paralisia cúbito-mediana, com uma garra de todos os dedos da mão, denominada “mão em garra” completa. Além disso, ocorre o encurtamento progressivo dos tendões flexores, promovendo contratura da região palmar. A paralisia do nervo radial é de uma ocorrência pouco comum. Nos casos de paralisia do nervo radial gera um quadro de mão caída (Op. Cit).
As deformidades e incapacidades das mãos na hanseníase não fazem parte necessariamente do quadro e da evolução clínica da doença. Mas como a hanseníase é uma doença infectocontagiosa de evolução lenta, para um diagnóstico precoce, é necessário que os profissionais da saúde estejam treinados e que a população esteja atenta para os sinais e sintomas iniciais. A incapacidade tende a ocorrer quando não há diagnóstico precoce da doença. Quanto mais precoce o diagnóstico e o tratamento da hanseníase, menores serão os riscos de sequelas e o período de contágio da doença.

Referências
AGRAWAL, A.; PANDIT, L.; DALAL, M. et al. Neurological Manifestations of Hansen's disease and their management. Clin Neurol Neurosurg.  107(6): 445-454, 2005.
ANDERSON, G. The surgical management of deformities of the hand in leprosy. J Bone Joint Surg Br 88(3): 290-294, 2006.
ARAÚJO, M. G. Hanseníase no Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 36(3):373-382, 2003.
PATRONY-CAMPOS, M.; MARGARIDO, L. C.; RODRIGUEZ, L. M. Incidência das deformidades da mão na hanseníase. Hansen. Int., 3 (1): 55-58, 1978.
DUERKSEN, F.; VIRMOND, M. Fisiopatologia da mão na hanseníase. In: Cirurgia reparadora e reabilitação em hanseníase. Bauru: Centro de Estudos Dr. Reynaldo Quagliato, Instituto Lauro de Souza Lima, 1997. Disponível em: http://hansen.bvs.ilsl.br/textoc/livros/DUERKSEN,%20FRANK/mao/PDF/fisiopat_mao.pdf. Acesso em: 06 jan. 2013.
GARBINO, J. A. Neuropatia Hanseniana. Disponível em: http://hansen.bvs.ilsl.br/textoc/livros/OPROMOLLA_DILTOR_nocoes/PDF/neuro_hansen.pdf, 1991. Acesso em: 06 jan. 2012.
JAMBEIRO, J. S.; BARBOSA, A. A.; REIS, M. G et al . Avaliação da neurólise ulnar na neuropatia hansênica. Acta ortop. bras.,  16 (4): 207-213,  2008 .
LOMBARDI, C.; FERREIRA, J. História natural da hanseníase. In: Hanseníase: epidemiologia e controle. São Paulo: IMESP SASEP, p. 13-20, 1990.
MARCIANO, L. H. S. C.; GARBINO, J. A. Comparação de técnicas de monitoração da neuropatia hanseniana: Teste de Sensibilidade e Estudo de Condução Nervosa. Hansen. Int., 19 (2): 5-10, 1994.
MOONOT, P.; ASHWOOD, N.; LOCKWOOD, D. Orthopaedic complications of leprosy. J Bone Joint Surg Br, 87 (10): 1328-32, 2005.
MOREIRA, D.; ÁLVAREZ, R. R. A. A importância da avaliação de incapacidades em membros superiores de pacientes portadores de hanseníase atendidos em nível ambulatorial. Fisioterapia em Movimento, 14: 21-4, 2001.
RODINI, F. C. B.; GONÇALVES, M.; BARROS, A. R. et al. Prevenção de incapacidade na hanseníase com apoio em um manual de autocuidado para pacientes. Fisioter. Pesqui.  17 (2): 157-166, 2010.