Pacientes
também são considerados contadores de histórias, segundo Frank (2000).
Eles contam as suas histórias, as narrativas de suas doenças. Os médicos e
estudantes de Medicina escutam suas histórias e as registram. Por isso, a
prática da medicina requer competência em narrativa, o que significa a
capacidade para reconhecer, assimilar, interpretar e atuar de acordo com as
histórias e dificuldades relatadas pelos pacientes (CHARON, 2001).
Os
estudantes de Semiologia Médica dão os seus primeiros passos na obtenção dessa
competência narrativa. Eles se encontram no que se pode chamar de estado de
“síncrese”, em que sua compreensão da clínica ainda é desarticulada, confusa,
fragmentada, para o estado de “síntese”, em que o aluno ascende a um estado de
compreensão mais fundamentada, mais sedimentada.
Será
que nesta fase de “síncrese”, diferentes alunos de Semiologia contam a mesma
história de um mesmo paciente?
Nesta
postagem, três alunos que cursam a disciplina de Semiologia Médica entrevistam
a mesma paciente, cada um em um dia, ao longo de três dias consecutivos, sem
terem se comunicado entre si sobre a história clínica colhida.
Os
três alunos entrevistaram M. P. S., 17 anos, sexo feminino, branca, solteira,
estudante, natural e procedente de João Pessoa - PB, com queixa principal de
vômitos e diarreia com sangue, quadro ocorrido 25 dias atrás.
Anamnese
1
HISTÓRIA
DA DOENÇA ATUAL
A
paciente refere vômitos e diarreia sanguinolenta desde o dia 22/12/12 após
comer um hambúrguer no dia anterior. O sintoma apareceu de modo súbito, e
descontínuo; a paciente vomitava sempre que comia e tinha diarreia
sanguinolenta em média cinco vezes ao dia. A paciente refere ainda dor
abdominal comparada à cólica intestinal, numa intensidade de um a dez, disse
sete; relatou ainda que a dor e os sintomas só melhoravam com medicação, mas
logo retornavam.
Com
o surgimento dos sintomas a paciente procurou o Hospital E. R., onde ficou
internada algumas horas, tomou soro com medicação, e depois retornou para casa;
os sintomas desapareceram momentaneamente, mas logo em seguida acabaram
retornando. A paciente então procurou a UPA, onde foi atendida, recebendo soro
com medicação, e depois mandada para casa; após ser atendida na UPA a paciente
refere que já conseguia se alimentar sem vomitar. Os sintomas retornaram
novamente, e dessa vez ela foi ao Hospital SVP, onde o tratamento foi o mesmo:
soro com medicação e alta; com o retorno, novamente, dos sintomas, a paciente
procurou o Hospital O., onde ficou internada alguns dias, e não soube precisar
os dias exatos, e depois foi transferida para o Hospital Universitário (HU).
A
paciente chegou muito desidratada no Hospital O., onde teve anasarca devido à
grande quantidade de soro administrada (sic), chegando a ganhar
oito quilos; lá, a paciente fez uma tomografia computadorizada,
ultrassonografia (não especificou), hemograma e sumário de urina, e em seguida,
foi encaminhada para o HU, onde refez os mesmos exames, exceto a TC.
A
paciente foi admitida no HU no dia 02/01/13 e recebeu diagnóstico de Síndrome
Hemolítico-Urêmica, com manifestações de anemia, plaquetopenia, hematomas, e
sangue na urina microscopicamente; foi feito um acesso venoso central e
iniciou-se um tratamento de hemodiálise e transfusão de plasma; ela melhorou
aos poucos do edema generalizado, mas chegou a ser transferida no dia 07/01/13
para a UTI, onde permaneceu quatro dias, devido a edema de pulmão, retornando à
enfermaria no dia 11/01/13.
Durante
o período da doença a paciente afirma ter tomado vários medicamentos para os
sintomas, mas só se lembra de Plasil, prescrito pelo médico na UPA para ser
tomado de 8/8h em casa.
A
paciente vem referindo melhora do quadro, sem vômitos e diarreia, conseguindo
se alimentar normalmente, sem mais edema generalizado, com perda de 4,5 kg.
Anamnese
2
HISTÓRIA
DA DOENÇA ATUAL
Paciente
relata vômitos e diarreia sanguinolenta depois que comeu um hambúrguer em uma
barraca localizada no Parque Solon de Lucena, 26 dias atrás. Disse que na noite
do dia posterior à ingestão do citado hambúrguer, iniciaram- se os episódios de
vômitos e diarreia sanguinolenta, subitamente. Disse ter ficado seis dias em
casa à espera de melhora. Dia 27 de dezembro, deu entrada no Hospital OM, muito
desidratada.
Ela
relatou que tomou soro até edemaciar (sic). Isso causou um
aumento de oito quilos. Tomou Plasil na tentativa de parar o vômito,
e dipirona para aliviar uma dor abdominal, que disse sentir nas duas primeiras
semanas do início da enfermidade. Uma dor em cólica, na escala entre um e dez,
era seis. Não piorava, era constante, não irradiava e aliviava com o uso de
dipirona. Fez ultrassonografia (USG) total do abdômen e tomografia
computadorizada (TC) do abdômen.
Foi
encaminhada ao Hospital universitário (HU) no dia 02 de janeiro,
apresentando anemia e plaquetopenia. Nas quase duas semanas no HU, tomou seis
bolsas de sangue, fez hemodiálise (através de um cateter venoso central) e
tomou duas bolsas de plasma a cada oito horas. Houve extravasamento de plasma
pelo braço direito, prejudicando a musculatura, ela não consegue fazer a
extensão do braço, esperou um fisioterapeuta para reabilitar o movimento do
membro superior direito, mas ele não apareceu. No HULW, fez uma USG e TC do
abdômen, exames de sangue e de urina. Passou quatro dias na UTI, sendo que dois
desses dias foi à espera de um leito. Relata que o médico a informou sobre um
tipo de bactéria que causou Síndrome Hemolítica-Urêmica (SHU), a qual causou a
insuficiência renal.
Está
à espera de um resultado de um exame para receber alta, mas não sabe dizer qual
seria o exame. Apresenta-se agora sem a sintomatologia que a levou à internação.
Anamnese
3
HISTÓRIA
DA DOENÇA ATUAL
Paciente
relata que, no dia 22 de dezembro de 2012, após comer um sanduíche, teve
vômitos e diarreia com sangue e, no dia seguinte, deu entrada no Hospital ER,
sendo diagnosticada com cálculo renal, tendo alta no mesmo dia e prescrição de
medicação (Plasil e Nausedron, para vômitos, não recordando a
paciente o nome da medicação prescrita para cálculo renal), e voltando para
casa. Dois dias depois, no dia 25 de dezembro, após apresentar novamente
vômitos e diarreia com sangue, a paciente foi à Unidade de Pronto Atendimento
(UPA), sendo medicada e voltando para casa no mesmo dia.
No
dia seguinte (dia 26 de dezembro), após apresentar mais uma vez os sintomas
acima citados, a paciente foi ao Hospital SVP, sendo medicada e voltando para
casa no mesmo dia. No dia 27 de dezembro, deu entrada no Hospital T, com
vômitos e diarreia sanguinolenta, sendo internada com urgência após ser
realizado o exame de glicemia capilar, com resultado de 65 mg/dL
(caracterizando quadro de hipoglicemia). Além disso, foram feitos os seguintes
exames: exame de sangue (que acusou plaquetopenia, anemia e hipoglicemia,
insuficiência renal), tomografia e ultrassonografia. No mesmo dia em que se
internou no Hospital T, a paciente recebeu soro com gotejamento durante os
quatro dias que permaneceu internada, tendo anasarca como consequência do uso
do soro (sic). Do Hospital T, a paciente foi encaminhada ao HULW, no
dia 02 de janeiro de 2013.
No
período de internação no HULW, passou a fazer hemodiálise na Nefrusa, 3 vezes
por semana (nas terças, quintas e sábados). No dia 5 de janeiro, passou a fazer
uso de duas bolsas de plasma a cada oito horas (três vezes ao dia, portanto).
Já no dia 9, teve um acesso venoso periférico que obstruiu e evoluiu com
rigidez no membro superior direito, apresentando a paciente dor na articulação
do cotovelo, pulsátil e com incapacidade de mobilização. No dia 11 de janeiro,
foi para a unidade de terapia intensiva (UTI), após sentir forte cansaço e
dispneia. Na UTI, após a realização de ultrassonografia, foi verificada a
presença de água em ambos os pulmões, e dado o diagnóstico de síndrome hemolítico-urêmica
(SHU), passando a paciente a fazer uso, além das medicações que vinha usando e
do soro, as medicações dobutamina e cloreto de potássio venoso. A paciente
ficou quatro dias na UTI, fazendo, nos dois primeiros dias diálise, que atenuou
a anasarca, apresentando a paciente emagrecimento de dois quilos. Os
outros dois dias que a paciente permaneceu na UTI foram apenas para aguardar
vaga na enfermaria. No dia 15 de janeiro, a paciente voltou à enfermaria e
permanece sob observação.
Foi
solicitada à paciente a realização dos seguintes exames: hemograma, ionograma –
cálcio, potássio, sódio, magnésio e cloro -, ureia e creatinina sérica, a serem
realizados no dia 20 de janeiro. Além disso, também foi solicitada à
paciente dez sessões de fisioterapia de membro superior direito e
uma avaliação no ambulatório de nefrologia do HULW, a ser realizada no dia 22
de janeiro.
Discussão
Os
três alunos registraram o cerne da história de maneira semelhante e
reprodutível. O quadro principal, o suposto fato desencadeante, a crença da
paciente sobre ter evoluído com anasarca pela administração inadequada de
cristalóides, o diagnóstico médico recebido, os medicamentos recebidos e a
evolução clínica foram registrados de maneira semelhante nas três anamneses.
Os relatos diferiram em
alguns aspectos, como a intercorrência do edema pulmonar (Anamnese 1), a
transfusão de sangue (e não apenas plasma) e a informação médica de que o
quadro havia sido causado por uma bactéria (Anamnese 2), o episódio de
hipoglicemia, o diferente percurso no sistema de saúde e o relato de
ultrassonografia revelando derrame pleural (Anamnese 3). Em apenas duas
anamneses, registrou-se a intercorrência de extravasamento de plasma no braço e
sua repercussão.
A
interpretação do entrevistador pode criar "meta-histórias" das
doenças, a partir dos componentes das narrativas dos pacientes. As histórias e
os eventos que se sucedem nas enfermidades são transformados em narrativas
clínicas (GROSSMAN, CARDOSO, 2006).
Entender
a comunicação como um processo de transferência de significados de um sujeito
para outro (paciente e estudante de Medicina/médico) exige pensá-la como mais
do que mera transmissão de dados, por que entra nesse processo a
intersubjetividade. Pela perspectiva da intersubjetividade, o conhecimento
depende de outras pessoas e a ideia é dada pelo uso da palavra numa determinada
comunidade, em práticas coletivas. Como afirma Ibaxe Júnior (2009), “a
verdade nunca é subjetiva, pois não se forma nenhuma essência e não se
considera o agente conhecedor como sujeito (subjectum = "o que
jaz dentro").
A mesma história, com versões ligeiramente
diferentes, e todas verdadeiras versões diferentes de uma mesma história,
ou versões discretamente diferentes de um relato, postulam que as
proposições ouvidas ou lidas são organizadas mentalmente em uma rede,
construída através de dois tipos de inferências: aquelas que conectam as idéias
semanticamente explícitas no texto, e aquelas que dependem do conhecimento
prévio (PARENTE et al., 2005).
É
preciso, ao ler ou ouvir uma história, entender o porquê da organização do
relato, da ordem dos eventos, da inserção de comentários e de significados
correlatos, que têm como finalidade salientar o foco que o relator deseja
enfatizar (PARENTE et al., 2005).
A
entrevista mostrará se entrevistador e entrevistado atribuem o mesmo
significado àquilo que está sendo dito, o que contribui para fortalecer a
interpretação do entrevistador. É importante salientar que os
avanços e recuos, da ordem na cronologia e da idealização que costumam permear
narrativas, quando elas envolvem lembranças, memórias e recordações (anamnese =
recordar). Todas as entrevistas são formas
especiais de conversação e, neste sentido, interativas (PAULILO, 1999).
Assim,
a narrativa é mutuamente construída pelos participantes do encontro de acordo
com as regras estabelecidas. Este enfoque dialógico da narrativa ressalta seu
caráter dinâmico e as interações que produz no paciente narrador e no
estudante ouvinte (FAVORETO; CAMARGO JR, 2011). Então, aparece a
"versão" da narrativa contada e registrada pelo entrevistador, no
caso, o estudante de Medicina cursando Semiologia.
No Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa, “versão” aparece como algo próximo disso: “cada
um dos diferentes modos de contar ou interpretar o mesmo ponto, fato,
história”. A entrevista de história oral é sem dúvida contingente – um momento único,
com circunstâncias únicas, que produz aquele resultado único (ALBERTI,
2000). Único para cada entrevistador único.
Assim,
verificou-se que uma narrativa de uma mesma paciente foi registrada por vários
estudantes de Medicina na fase inicial de sua fase clínica da graduação com reprodutibilidade,
embora detalhes da história tenham sido registrados de maneira diversa.
Referências
ALBERTI,
V. De “versão” à “narrativa” no manual de história oral. 2000.
Disponível em:
CHARON,
R. Narrative Medicine. A Model for Empathy, Reflection, Profession and
Trust. JAMA 286(15): 1897-1902, 2001.
FAVORETO,
C. A. O.; CAMARGO JR, K.R. Narrative as a tool for the development of clinical
practice. Interface - Comunic., Saude, Educ., 15 (37): 473-83, 2011.
FRANK,
A. W. The Standpoint of Storyteller. Qualitative Health Research. 10(3):
354-365, 2000.
GROSSMAN,
E.; CARDOSO, M. H. C. A. As narrativas em medicina: contribuições à prática
clínica e ao ensino médico. Rev. bras. educ. med. 30
(1): 6-14, 2006.
IBAXE
JR, J. Distinções entre subjetividade e intersubjetividade. 2009.
Disponível em:
http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/colunas/2553/colunas+ultimainstancia.shtml. Acesso em 22 fev. 2013.
PARENTE,
M. A. M. P.; HOLDERBAUM, C. S.; VIRBEL, J.; NESPOULOUS, J-L. A relação
pergunta-resposta como preditor do reconto de histórias. Psicol.
Reflex. Crit. 18 (2): 267-276, 2005.
PAULILO,
M. A. S. A pesquisa qualitativa e a história de vida. Serviço Social em
Revista. 1999. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/ssrevista/c_v2n1_pesquisa.htm. Acesso em 22 fev. 2013.