12 de agosto de 2013

Envelhecimento, Doenças Crônicas e Multimorbidade

Por Rilva Lopes de Sousa-Muñoz

Introdução
A tendência de evolução dos cuidados de saúde no mundo aponta para um aumento considerável da expressão das doenças crônicas na prática clínica,  em grande parte como consequência das mudanças demográficas que se traduzem em um considerável envelhecimento da população.
A magnitude do envelhecimento populacional repercute de forma marcante na área da saúde, não só no que diz respeito à necessidade de maior conhecimento das doenças que afligem a população idosa, mas também em relação à necessidade de reorganizar os modelos assistenciais.
As doenças dos idosos geralmente são crônicas e múltiplas, demandam mais serviços de saúde e exigem cuidados permanentes. Na realidade, a maior parte das pessoas com condições crônicas têm comorbidade, entendida como a presença simultânea de múltiplas doenças crônicas, e esses doentes procuram habitualmente cuidados de saúde para as várias doenças simultaneamente, e não para uma situação única, principal.
Um fator agravante para o problema é ainda a falta de serviços ambulatoriais adequados, e que faz com que o primeiro atendimento à saúde aconteça em estágio avançado do quadro, aumentando os custos e o número das admissões hospitalares, e portanto, com redução da possibilidade de prognósticos favoráveis (Rozenfeld, 2003). Portanto, os pacientes com doenças e/ou condições crônicas requerem mais serviços sociais e médicos e por mais tempo.
Relacionada a esse problema, está a maior complexidade do atendimento do idoso com morbidade múltipla, ou multimorbidade. Cada paciente nesta faixa de idade apresenta, em média, seis problemas de saúde concomitantemente (MARTIN et al., 2006). Estima-se que 50% dos pacientes com uma doença crônica apresentam mais de uma condição clínica (HOFFMAN et al., 1996). A dificuldade de controle e prevenção destes problemas, associada à precária condição sócio-econômica da maioria dos idosos no Brasil e, em particular, na Paraíba, resulta no agravamento do processo de envelhecimento patológico (SOUSA-MUÑOZ et al., 2002).
A abordagem da multimorbidade é uma área de incertezas em que, individualmente, os profissionais de saúde estabelecem um raciocínio hipotético-dedutivo baseado na integração de conhecimentos e da experiência, adquiridos empiricamente com a prática clínica. Nesse sentido, discutir a abordagem do doente com multimorbidade torna-se uma necessidade, atendendo à frequência e complexidade do problema, à ausência de literatura científica que apoie a tomada de decisão, à especificidade do problema na clínica médica, assim como à reflexão sobre o processo de raciocínio clínico na atenção a este paciente.
             
Multimorbidade
Pelo exposto, percebe-se que a abordagem da multimorbidade é uma temática que deve ser privilegiada na área de Saúde atualmente. A multimorbidade tem um profundo impacto tanto sobre os indivíduos afetados, como no seu uso de serviços de saúde. Salienta-se a importância da multimorbidade na prática clínica, realçando o interesse e a necessidade de se disporem de dados e índices de comorbidade para que seja possível comparar e avaliar processos e resultados nos cuidados de saúde do idoso no nosso meio.
Pouco há publicado na literatura médica sobre multimorbidade. Sabe-se que os doentes portadores de múltiplas doenças crônicas são freqüentemente excluídos de estudos clínicos e, por consequência, há pouca informação disponível sobre este subgrupo de pacientes (TEIXEIRA; LEFEVRE, 2001). A pesquisa neste tema é limitada, focalizando aspectos epidemiológicos e não intervenções que melhorem os desfechos clínicos de pacientes com multimorbidade, principalmente para idosos (SMITH et al., 2008). 
Multimorbidade e comorbidade são considerados sinônimos (Fortin et al., 2005). Embora descreva de forma distinta os conceitos de comorbidade e multimorbidade, Starfield (2007) utiliza a palavra comorbidade para se referir à coexistência de problemas, independentemente da forma como estes são estudados, ligados ou não a uma doença índice ou sentinela.
A palavra “comorbidade” foi criada por Feinstein há 30 anos. Este autor definiu o termo comorbidade como “qualquer entidade adicional que surge ou que pode ocorrer durante o curso clínico de uma dada doença-índice num doente” (FENSTEIN, 1970). Desde então, o conceito tem evoluído, existindo autores que têm uma definição mais simples deste conceito, indicando apenas a coexistência de doenças num mesmo paciente (SMITH et al., 2008; BROEIRO et al., 2007).
Recentemente, por se considerar vital para o campo de pesquisa, dadas as suas repercussões metodológicas, quer das causas, quer das consequências da comorbidade, ou multimorbidade, tem sido proposta uma definição mais clara destas variáveis, propondo-se a sua classificação em três categorias: simples (coexistência de doenças, sejam elas ou não coincidentes), associada (não sendo nenhuma delas conhecida como causal) e causal (existindo uma implicação causal entre as doenças coexistentes) (BROEIRO et al., 2007).
Em termos quantitativos, Smith et al. (2008) definem multimorbidade como a coexistência de duas ou mais doenças crônicas. A taxa de prevalência de multimorbidade é de 60% entre pessoas de 60 a 80 anos, principalmente representada pela coexistência de hipertensão arterial e diabetes mellitus (FORTIN et al., 2005).
A prevalência de multimorbidade aumenta com a idade. Britt et al. (2008) verificaram que 83,2% dos pacientes com 75 anos ou mais de idade têm multimorbidade, enquanto essa porcentagem é de 29% dos pacientes de todas as idades atendidos em clínica geral, e de 25,5% na população geral. A multimorbidade é considerada um importante preditor de complicações e de resultados desfavoráveis (MARTINS et al. 2008). DesHarnais et al. (1991) ressaltam que o peso dos diagnósticos secundários (ou comorbidades) na gravidade do caso varia segundo o diagnóstico principal, e que certas combinações de condições mórbidas apresentam maior risco que outras. Além disso, associado à multimorbidade, 50% dos pacientes idosos  consomem múltiplos medicamentos simultaneamente (MOSEGUI et al., 1999).
Por outro lado, existe uma forte relação, em todos os grupos etários, entre o número de doenças apresentadas e o aparecimento de novas morbidades (STARFIELD, 2007) e, além disso, determinadas condições têm um impacto significativo sobre a expectativa de vida (ALVARENGA et al., 2007) e sobre a possibilidade de ter outra doença (SMITH et al., 2008). Já tem sido demonstrado que múltiplas condições crônicas ocorrendo no mesmo indivíduo associam-se com desfechos de saúde adversos (KADAN et al., 2007), ou seja, pacientes com maior número de doenças coexistentes têm maior possibilidade de morrer.
O efeito das comorbidades sobre a mortalidade tem sido medido tanto pela quantidade de doenças coexistentes, quanto pelo seu tipo. As doenças cardíacas, pulmonares, renais, acidente vascular cerebral e diabetes mellitus são as mais fortemente relacionadas com o desfecho (ALVARENGA et al., 2003). Pesquisas sobre multimorbidade ou comorbidade têm documentado que este fenômeno influencia os desfechos clínicos em muitas áreas dos cuidados de saúde (LIBRERO et al., 1999; EXTERMANN et al., 1998). Outros desfechos que têm sido relacionados com a multimorbididade incluem mortalidade, tempo de internação e de readmissão hospitalar. Uma associação entre multimorbidade e incapacidade funcional pacientes idosos também tem sido descrita (EXTERMANN et al., 1998; FUCHS et al., 1998).
Admite-se que a necessidade de assistência clínica dobra quando uma pessoa apresenta uma doença crônica (MERTHI; CECÍLIO, 2003). Recentemente foi demonstrado que a presença de doenças como hipertensão arterial sistêmica, doença hepática crônica e diabetes mellitus são condições associadas com atendimentos clínicos acima da média (DIAS-DA-COSTA et al, 2008; AMARAL et al., 2004). Além disso, para a maioria destes pacientes idosos, uma doença aguda requerendo hospitalização é seguida por um progressivo declínio funcional, resultando em altas taxas de mortalidade nesta população (WALTER et al., 2001).
Nesse sentido, a observação das admissões hospitalares repetidas dos idosos no campo do nosso exercício profissional docente, associada a outras indagações que afloraram no grupo de trabalho assistencial, desenvolvido junto ao Projeto de Extensão Cuidar nas enfermarias de Clínica Médica do Hospital Universitário Lauro Wanderley (HULW/UFPB), no âmbito do Programa PROBEX/UFPB (FERREIRA et al., 2007), foi o contexto de idéias que motivou a definição do tema desta postagem.
É crescente o interesse em estabelecer quais os fatores que, isolada ou conjuntamente, melhor explicam o risco que um idoso tem de morrer em curto prazo, uma noção útil do ponto de vista epidemiológico e clínico.

Mudança de orientação no modelo de cuidados à saúde do idoso
    A população idosa que, hoje, representa cerca de 9% da população, consome mais de 26% dos recursos de internação hospitalar no Sistema Único de Saúde, SUS (ALVARENGA et al., 2003). Por outro lado, é evidente a carência de profissionais qualificados para o cuidado ao idoso, em todos os níveis de atenção clínica, seja primária, secundária ou terciária.
A população idosa registra uma fragilização e probabilidade de agravos maiores e, em conseqüência, é a que proporcionalmente consome mais serviços de saúde. Mas, como o sistema de atenção ao idoso é, em muitas localidades do País, precário e desorganizado, não fornece condições para que os recursos sejam utilizados melhor e mais adequadamente. O clínico geral que faz atendimento de geriatria vai precisar de instrumentos que o ajudem na identificação mais correta possível dos distúrbios, a fim de que seja capaz de saber como tratar, e/ou quando encaminhar, o paciente que tem em suas mãos, para um profissional com treinamento específico em envelhecimento humano (VERAS, 2003).
O aumento da população idosa exige mudanças nos modelos de assistência e previsão das doenças que acometem os idosos. Trata-se de um grupo etário cujos cuidados com a saúde devem ser maiores. Admite-se que a necessidade de assistência clínica dobra quando uma pessoa apresenta uma doença crônica (MERTHI; CECÍLIO, 2003).
Em geral, a população de idosos apresentam uma alta prevalência de doenças crônicas, quase 90% referiram pelo menos uma doença crônica (RAMOS, 2003). A presença de doenças como hipertensão arterial sistêmica, doença hepática crônica e diabetes mellitus foram as condições mais associadas com utilização de atendimentos ambulatoriais acima da média, assim como também as pessoas que foram hospitalizadas no último ano. Esse achado revela que o fato de consultar freqüentemente pode indicar maior gravidade das manifestações, ao contrário do que admitem gestores dos sistemas de saúde que, muitas vezes atribuem utilização elevada com uso inadequado (DIAS-DA-COSTA et al., 2008; TRAVASSOS; MARTINS, 2004).
Para lidar com esta realidade os profissionais de saúde necessitam implementar um modelo de cuidados que se dirija à pessoa total integrando toda a constelação de comorbidades dessa pessoa. Para isso será necessária uma mudança de orientação de um modelo tradicional baseado numa abordagem por doença para um novo modelo de cuidados crónicos.
Este modelo deverá ter como componentes principais a capacidade de mobilizar os recursos comunitários que vão ao encontro das necessidades dos doentes e o apoio à autogestão da doença, capacitando e preparando os doentes para gerirem a sua própria saúde e cuidados de saúde. Como a pessoa doente é um elemento essencial da gestão da sua própria doença, o modelo de cuidados crônicos terá que ser desenvolvido numa perspectiva generalista, orientada para cuidados de saúde primários, mas que seja centrado na pessoa; este modelo é conhecido pela designação de Modelo Centrado no Paciente (SOUSA, 2005),  e promove uma abordagem em que se exploram tanto a doença como a experiência de doença.
Este modelo precisa também possuir continuidade de cuidados, que é considerado custo-efetivo, proporcionando a redução do agravamento das doenças e de internações hospitalares (TRAVASSOS; MARTINS, 2004). Além disso, no acompanhamento ambulatorial podem ser identificadas necessidades médicas, psicossociais e de reabilitação do paciente ao longo do continuum, em virtude da cronicidade dos problemas, implicando na necessidade de compreensão do curso dos cuidados para cada doença específica. A continuidade do acompanhamento pode proporcionar também a integralidade do cuidado, o que está necessariamente ligado à multidisciplinaridade entre os profissionais de saúde.
Historicamente, a assistência à saúde do paciente do idoso tem sido prestada através de uma série de consultas pouco conectadas, tratando-se o indivíduo como um cliente diferente para cada um de seus provedores de atenção, em diferentes momentos (THEME FILHA et al., 2008). Contudo, a assistência continuada ao paciente com doença crônica deve constituir um conceito mais abrangente, no qual vários profissionais de saúde trabalham de forma integrada. Assumir este conceito requer a garantia da continuidade dos cuidados de saúde em qualquer nível do sistema para o paciente portador dessas condições.
À continuidade de cuidados associa-se ainda diminuição do envio a serviços de especialidade, menor número de prescrições e aumento de adesão. A importância deste tipo de abordagem tem sido documentada cientificamente, evidenciando geralmente melhor serviço aos doentes, beneficiando estes mais quando os profissionais de saúde trabalham em conjunto (MARCOPITO et al., 2005; RAMOS, 2003).
As dificuldades encontradas para o acompanhamento de pacientes portadores de doença crônica e a antecipação às complicações devidas a essas enfermidades devem-se ao fato de que a prática de saúde que se instalou no Brasil, nos últimos 30 anos, é predominantemente curativa (atenção secundária), de que poucos recursos são destinados à atenção primária (prevenção) e praticamente nenhum, à atenção terciária (reabilitação e cuidados paliativos).

Capacidade funcional: novo paradigma de saúde da pessoa idosa
O envelhecimento progressivo da população e o aumento da prevalência das doenças crônicas têm sido apontados como os principais fatores responsáveis pelo desenvolvimento de incapacidade funcional (THEME FILHA et al., 2008), o que representa um fator complicador para a relação entre comorbidades e mortalidade.
As doenças crônicas reúnem um grande grupo de agravos que lideram as causas de morte nas áreas urbanas brasileiras (MARCOPITO et al., 2005). Além disso, o envelhecimento progressivo da população e o aumento da prevalência dessas doenças crônicas têm sido apontados como os principais fatores responsáveis pelo desenvolvimento de incapacidades funcionais.
Do ponto de vista da saúde pública, a capacidade funcional (capacidade de manter as habilidades físicas e mentais para uma vida independente e autônoma) surge como um novo conceito, mais adequado, para instrumentalizar e operacionalizar a atenção à saúde do idoso. Nesse sentido, ações preventivas, assistenciais e de reabilitação para melhoria da capacidade funcional ou, no mínimo, a sua manutenção são fundamentais para a qualidade de vida dos idosos (NEGRI et al., 2004). Portanto, a perda funcional é um importante indicador de envelhecimento patológico.
A presença de uma doença crônica não implica que o idoso não possa gerir sua própria vida e encaminhar o seu dia-a-dia de forma totalmente independente. Um idoso com uma ou mais doenças crônicas pode ser considerado um idoso saudável, se comparado com um idoso com as mesmas doenças, porém sem controle destas, com seqüelas decorrentes e incapacidades funcionais associadas.
Assim, o conceito clássico de saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostra-se inadequado para descrever o universo de saúde dos idosos, já que a ausência de doenças é privilégio de poucos, e o completo bem-estar pode ser atingido por muitos, independentemente da presença ou não de doenças.
A capacidade funcional do idoso podem ser até mais importantes que a própria questão da morbidade, pois se relaciona diretamente à qualidade de vida do idoso (CHAIMOVICZ, 1997). Nesse sentido, como a característica biomédica principal da senescência relaciona-se ao declínio da habilidade do idoso em adaptar-se às tensões usuais da vida, tornando-o menos capacitado à manutenção de sua homeostasia, torna-se essencial o interesse pelos problemas de instabilidade psicomotora, que deve ser levada em consideração na análise do problema da multimorbidade.
É igualmente evidente que o grau de incapacidade funcional cresce em todas as idades como consequência do número de doenças presentes, mas nos idosos esta relação é ainda maior (FORTIN et al., 2005). Estas duas variáveis são fatores importantes na ocorrência de hospitalizações no paciente idosos.
Em 2003, cerca de 14% (24,6 milhões de pessoas) dos brasileiros idosos foram submetidos a uma ou mais internações hospitalares no ano anterior e, entre estes, 20,7% tiveram reinternações no mesmo período (IBGE, 2003). Sabe-se que as taxas de admissão hospitalar e o tempo médio de ocupação do leito por idosos são significativamente mais elevados quando comparados aos outros grupos etários (AMARAL et al., 2004).
Estudos observacionais realizados nas enfermarias de clínica médica do HULW/UFPB enfocando a problemática da mortalidade e incapacidade funcional do idoso hospitalizado indicam a importância epidemiológica do problema no nosso meio (SOUSA-MUÑOZ et al., 2002; SOUSA-MUÑOZ et al, 2001). Por outro lado, a abordagem do problema da morbidade múltipla, ou multimorbidade, pela sua complexidade e ausência de evidências científicas adequadas, requer a realização de pesquisas que facilitem o raciocínio clínico e a decisão diante do problema no contexto local.
Por essas razões, embora não seja avaliada rotineiramente no exame médico padrão, a determinação do grau de incapacidade funcional do paciente idoso é fundamental para compreender o ônus da doença sobre o indivíduo. 

Referências

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