Por André Augusto Lemos Vidal de Negreiros
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB
Resumo
A elaboração de trabalhos científicos é um exercício cotidiano de
construção de argumentos. Na prática da ciência, um pesquisador em grupo de
cientistas pode, em um dado momento, questionar um argumento no qual o demais
pesquisadores acreditam como verdadeiras. Entretanto, ao fazê-lo, terá o ônus de
provar que aquele argumento não é confiável. Esta é a chamada Navalha de Hitchens.
Palavras-Chave: Ciência. Epistemologia. Conhecimento.
Palavras-Chave: Ciência. Epistemologia. Conhecimento.
Um paradigma científico, segundo Thomas Kuhn (1989), seria um aglomerado de argumentos
compartilhados por um grupo definido, que permite a esse grupo delimitar quais
seriam os problemas que deveriam ser objeto de estudo, assim como quais seriam
os métodos de investigação aceitos por este grupo particular. A iniciação dos métodos de pesquisa seria realizada através da utilização do conjunto de procedimentos
aceitos por essa comunidade científica (MATTOS, 2011).
Posteriormente às publicações das teses de Kuhn, muitos cientistas vêm discutindo a cerca da ciência
e suas práticas. Knorr-Cetina (1999) evidencia que os cientistas não elaboram
seus estudos somente em atenção ao paradigma científico da sua comunidade
científica, porém também o fazem em consideração às alternativas de circulação
e renovação do conhecimento para fora dos muros da comunidade científica. Dentro
deste cenário de reflexão, propõe-se desmitificar a ideia que a ciência é um
meio de descobrir a verdade, de evidenciar o que realmente acontece (MATTOS,
2011).
Nesse
prisma, a construção de um trabalho científico pode ser interpretada como a
elaboração de argumentos formados com o propósito convencer um determinado
grupo de pessoas ou certa comunidade científica a qual o pesquisador pertence.
Quando se desejar convencer alguém ou algum grupo através de argumentos, necessita-se,
como premissa, a utilização de pressupostos que não são controversos, ou
melhor, que seja, que estejam em comum com o público ao qual se dirige (MATTOS, 2011).
Santos
(2000) ressalta o caráter fiduciário da comunidade científica, ou seja, ele
enfatiza que o grupo de pesquisadores sempre toma como premissa o conjunto de
conhecimentos já evidenciados como se fossem verdadeiros, logo, são
desobrigados da avaliação por essa comunidade. Obviamente um pesquisador em
grupo de cientistas pode, em um dado momento, questionar um argumento no qual o
demais pesquisadores acreditam como verdadeiras. Entretanto, ao fazê-lo, terá o
ônus de provar, antes de tudo, que aquele argumento não é confiável.
Estabelece-se, desta forma, uma assimetria, pois, usualmente, admite-se que o
pesquisador não necessita desperdiçar tempo e espaço em seus trabalhos
científicos repetindo e fundamentando ideias nas quais sua comunidade acredita,
no entanto, deve ater-se minuciosamente na argumentação de fatos que contrariam
os pensamentos pressupostos pelo grupo de cientistas (MATTOS, 2011).
Entendendo a importância da
construção de argumentos para prática da ciência, o provérbio em latim “Quod gratis asseritur, gratis negatur” foi
largamente utilizado pelo mundo desde o início do século IXX, porém ganhou
notoriedade no século XXI por Christopher Hitchens, que utilizou este provérbio
na língua inglesa, “What can be asserted
without evidence can be dismissed without evidence” e, adaptando para o
português, significa “O que é afirmado
sem argumentos pode ser descartado sem argumentos”. A Navalha de Hitchens, como
ficou conhecida mundialmente, alicerça-se nos preceitos da epistemologia, com a
utilização do ônus da prova (HITCHENS, 2007).
Tomando como exemplo um debate sobre
determinado tema, parte-se da premissa de que quem faz a afirmação da
existência de algo é quem tem o ônus da prova, ou seja, quem defende a posição
de existência de algo é quem cabe o encargo de oferecer argumentos necessários
para sustentá-la. No momento em que um cientista, filósofo ou qualquer outro
debatedor afirma uma proposição, porém sem provas ou argumentações factíveis,
essa afirmativa não terá valor argumentativo e deve ser desconsiderada, pois
não tem um raciocínio lógico, tratando-se, portanto, de uma falácia.
O processo do convencimento estabelece-se por duas formas básicas. A primeira, o pesquisador precisar se autoconvencer dos fatos que o levaram a pesquisar sobre determinado tema; a segunda, o pesquisador necessita convencer os demais pares de sua comunidade científica ( MATTOS, 2011).
O processo do convencimento estabelece-se por duas formas básicas. A primeira, o pesquisador precisar se autoconvencer dos fatos que o levaram a pesquisar sobre determinado tema; a segunda, o pesquisador necessita convencer os demais pares de sua comunidade científica ( MATTOS, 2011).
Santos ( 1989) pode descrever com
mais detalhes como se estabelece este processo de convencimento:
[...] mas o cientista, se for competente, isto é, se conhecer bem a comunidade científica a que se dirige, sabe que a tradição intelectual instaurou uma duplicidade, e que, por isso, os expedientes que usa para se autoconvencer não coincidem e não tem de coincidir exatamente com aqueles que podem convencer a comunidade científica. Advertido dessa duplicidade, adota as medidas necessárias durante o processo de investigação para a neutralizar, ou seja, para que os resultados a que chega sejam tão convincentes à luz dos expedientes privados [...] como à luz dos expedientes públicos [...]. Um cientista que tem particular confiança nos métodos qualitativos pode estar plenamente convencido dos resultados a que chegou por via da observação participante, mas mesmo assim, sabendo que se dirige a uma comunidade científica quantofrênica [...] pode acautelar-se com a realização de um inquérito por questionário [...]
Portanto, a
definição dos métodos científicos pelo pesquisador surge da sua relação
contínua com comunidade científica a qual participa. De um lado, o investigador
personifica essa comunidade e seleciona os instrumentos de pesquisa que
servirão como argumentos para seu autoconvencimento. De outro, o pesquisador
prevê as críticas que receberia por parte dos pares de sua comunidade que não
concordam de alguma forma com os argumentos que construíram o
autoconvencimento. É a partir daí que se estabelecem as escolhas metodológicas (MATTOS,
2011).
Santos (1989) enfatiza que:
para se convencer a si próprio dos seus resultados e dos vários trâmites para os atingir, o cientista sabe que tem que pôr constantemente o carro à frente dos bois, mas sabe também que, para convencer a face pública da comunidade científica, tem de, constantemente, passar o carro para trás dos bois.
Todo
cientista deve entender esta duplicidade, ou seja, deve dominar as regras que
permeiam o processo de elaboração argumentativa em uma comunidade científica a
qual está engajado, e deve ter ciência que estará sujeito a transgressões por
parte da comunidade. Por isso, a
produção do conhecimento científico está estreitamente relacionada ao exercício
diário da crítica. O treinamento da autocrítica, da previsão da crítica da
comunidade científica a qual faz parte, porém também deve estar preparado em receber
a crítica dos pares e de criticá-los (MATTOS, 2011).
O
processo de publicação de artigos científicos estima a elaboração do exame
crítico pela comunidade científica. Por exemplo, um artigo, quando submetido a
um periódico, irá passar por uma
avaliação crítica pelos pares, e só será
enviando para publicação se o pesquisar convencer os avaliadores de sua
veracidade. Então, uma vez publicado, será alvo de críticas por todos os
pesquisadores que fazem a leitura daquele periódico (MATTOS, 2011).
A filosofia iluminista foi uma das principais fontes de inspiração do pensamento de Hitchens, este intelectual polêmico e brilhante, morto em dezembro de 2011.
Referências
MATTOS, R.A. Ciência, Metodologia e Trabalho Científico (ou Tentando escapar
dos
horrores metodológicos). In MATTOS, R. A.; B APTISTA, T. W. F. (Orgs.) Caminhos
para
análise das políticas de saúde,
2011. p. 20-51. Disponível em: www.ims.uerj.br,/ccaps.
HITCHENS, C. Deus Não é Grande: como a religião envenena tudo. Doze Books, Nova York, 2007.
KNORR-CERINA,
K. Epistemic
Cultures. Cambridge, MA: Harvard
University Press, 1999.
KUHN, T. A
estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1989.
SANTOS, B.S. Introdução
a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
SANTOS, B.S. Para um novo senso comum. A ciência, o direito e a política na
transição paradigmática. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício
da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.