Por Carolina
Campos Brito
Estudante de Graduação em Medicina
da UFPB
Hoje o HU era só poesia. Poesia alegre, poesia triste, mas era poesia. O
assobio, realizado com tanto esmero, daquela música tão melancólica transpunha
paredes, atravessava corredores, dava a curva e entrava na salinha de
prescrição, onde eu me encontrava - tão quente, tão abafada, ao mesmo tempo que, lá fora, a chuva caía - e ecoava em mim, em todo o meu arcabouço, que ressoava, e chegava até ao coração, até aos miócitos, até às menores partículas que possam
existir. De quem seria? Quem emanava aquele som? Pelo que estava passando, que
problemas estaria enfrentando? Seria homem ou mulher? Será que tinha um amor?
Será que chorava por ele? Ou será que simplesmente assobiava aquela canção, só
assim, por assobiar?
Fui examinar meus pacientes, naquele quarto, o 317. Desde que entrei na
Enfermaria Pediátrica, todos os meus pequeninos, não sei por quê, se obra do
destino ou se coisa comum, sem significado, todos eles são/foram daquele mesmo
quarto, daquele 317. O menorzinho (vou chamar assim em nome da boa ética)
dormia, com sua sonda nasogástrica e seu acesso venoso central da veia
subclávia direita. Abriu os olhinhos quando cheguei, num olhar perdido, como
tinha sempre, e voltou a fechá-los, como quem não me deu muita importância.
"Bom dia, pequenino! Titia chegou para te ver! Como está lindo todo
enroladinho nesse lençol!", falava, enquanto tirava meu estetoscópio azul
do pescoço e aproveitava o sono do pequeno para fazer as devidas auscultas, com
calma.
No berço à frente, estava minha outra paciente, de apenas 4 meses,
dormindo. Desnutrida, sonda nasogástrica instalada. Parecia um soninho tão
gostoso que por uns segundos eu invejei... Do lado, a mãe, toda coberta, até a
cabeça, numa poltrona preta, também dormia. Essa mulher tinha sido acusada de
roubar, semana passada, o celular de outra mãe do quarto e foi pega no flagra.
Lamentei o ocorrido. Furtou, mas continuava ali, do lado da filha, embora a
bebê estivesse com o berço aberto, situação de perigo. Ontem, durante o exame, o
mau cheiro era tremendo.
Ao olhar para o lado, estava a mãe do primeiro paciente que comentei,
debruçada sobre o berço de outra criança, uma garota. Chegara na semana
anterior a pequenina, deve ter por volta dos 6 anos. Suspeita de calazar. Foi
tão amorosa comigo ao ser internada. Deu-me boas-vindas (é, ela que me deu
boas-vindas, e não o contrário) alegre, sapeca, com um balão feito de luva
cirúrgica, todo rabiscado, enquanto dizia: "titia, titia, desenha um bolo
pra mim!". E eu desenhei um bolo, dois (um ela disse que era de
chocolate), uma casa, um jardim, uma nuvem, o sol, uma flor e uma borboleta,
coisas assim, bem simples, quase rabiscos. Ganhei em troca um sorrisão,
daqueles que te deixam satisfeita, feliz, daqueles que de tão singelo e sincero
conseguem provocar aquelas sensações gostosas que a pessoa tem e não sabe muito
bem explicar. E nem precisa.
Desde ontem a alegria da princesa tinha sumido. Seu tio fora assassinado
no final de semana. Correram boatos que mexia com drogas. A mãe da criança, irmã
do falecido, enlouqueceu, segundo os comentários. Destratou a pequenina e
simplesmente foi embora, para o enterro do irmão, pelo que eu soube. Enquanto
isso, a paciente ficou lá, sozinha, sem sorriso nos lábios, sem olhar de
vivacidade, sem vontade de brincar, sem mãe. Mas ganhou uma amiga: sim, a mãe
do paciente pequenino, a que estava debruçada sobre o berço dela quando cheguei
no quarto. É uma menina acalentando outra. Só tem 15 anos. Mas é uma companhia,
e tem cuidado, e tem dado banho, e penteado os cabelos, e dado comida. Tem dado
amor. Disseram que a genitora da criança voltava hoje, mas não se sabe ao
certo. A garota piorou, passou de uma febre de 37.8 para 39.8ºC, tosse com
secreção. Soube que haviam solicitado radiografia de tórax e iam iniciar antibioticoterapia.
Aproximei-me da pequena, que não parecia muito
simpática. A mãe "adotiva", vou assim chamar, a botou no colo,
enquanto a enfermeira ia tirando o esparadrapo que estava no braço da menina,
fruto de um acesso periférico. Ela havia colhido sangue também. E enquanto a
profissional desenrolava aquela fita branca, que gruda mais do que tudo, a
menina pegou minha mão, e apertava. Olhei para o seu rostinho, suado, com medo.
E apertava, apertava tanto, como em busca de um consolo, de um amparo, de uma
proteção. E eu conversava com ela, dizendo: "Olha, titia vai desenhar tudo
aquilo pra tu, e mais um montão de coisas! Vai fazer até bolo de morango dessa
vez! Certo?" Ganhei um balançar de cabeça, quase imperceptível,
concordando com o que eu falava. É, eu servi de amparo para aquela criança.
Saí mais cedo hoje, e estou cheia de coisa para
estudar. Mas era mais forte do que eu. Eu precisava escrever. Precisava, porque
hoje o HU era só poesia. Poesia alegre, poesia triste, mas era poesia.