26 de setembro de 2016

Ascite por Tuberculose Peritoneal

Alessandro Lucas de Oliveira
André Luis Pereira Vieira
Filipe Cruz Carneiro
Gabrielle Hyllen Neves Rodrigues Vieira
Melissa Toscano Montenegro de Morais
Mirella Bezerra de Lima Silva
Estudantes de Graduação em Medicina da UFPB; integrantes da Liga Paraibana de Clínica Médica (LACLIMED)

RELATO DO CASO CLÍNICO
Paciente de 29 anos, sexo masculino, branco, solteiro, aposentado por invalidez, natural de..., procedente de..., com queixas de ascite e edema em membros inferiores há 5 meses.  O paciente relata que há 5 meses passou a apresentar ascite, edema de membros inferiores, tosse seca e dispneia aos mínimos esforços, evoluindo para dispneia até mesmo na posição sentada, além de intensa perda de apetite. Procurou assistência médica em hospital universitário da cidade vizinha, onde realizou biópsia, a qual evidenciou tuberculose peritoneal (TBP) [esta informação foi omitida na apresentação inicial do caso clínico]. Foi, então, transferido para o hospital universitário desta cidade, onde também foram identificados derrame pleural e pneumonia [esta última informação também foi omitida no relato do caso clínico]. No curso do tratamento da tuberculose peritoneal desenvolveu hepatite medicamentosa, tendo que interromper a terapêutica. 
O paciente relatou ainda perda de peso e inapetência. Negou febre, sudorese e calafrios. Refere mancha hiperpigmentada em região malar e alopecia. Nega outras lesões cutâneas e alterações nos fâneros. Nega alterações urinárias. Refere limitação de movimentação de mão e pé direitos
Relata varicela e coqueluche na infância, além de rinite crônica na vida adulta, alergia a mofo e eritromicina. Há sete anos, apresentou hipertensão intracraniana devido a um traumatismo craniencefálico, sendo realizada derivação ventrículo-peritoneal, e relata hemiparesia à direita. Hospitalizado pelo menos quatro vezes, de acordo com a mãe, por esta razão. Faz uso crônico de fenobarbital, fenitoína, ofloxacina, estreptomicina, etambutol, prednisona e ranitidina. Nega hemotransfusões e hepatites. Não quis informar sobre antecedente de promiscuidade sexual. Reside em casa de alvenaria, com saneamento básico. Nega tabagismo, etilismo e consumo de drogas ilícitas.
Ao exame físico: Temperatura não informada, FR: 18 irpm, FC: 80 bpm, PA não informada. Peso e altura não registrados na ficha de admissão. Paciente em regular estado geral, lúcido e orientado, anictérico, acianótico, hipocorado (+/4+), hidratado. Pele com manchas hipercrômicas na face, em “asa de borboleta” e no dorso dos pés. Ausência de gânglios superficiais palpáveis. Ritmo cardíaco regular, em 2 tempos, bulhas cardíacas normofonéticas, sem sopros. Murmúrio vesicular  reduzido em terço inferior e em base do hemitórax direito. Abdome globoso, com ruídos hidroaéreos presentes, flácido, depressível, com fígado palpável a 6 cm do rebordo costal direito, doloroso à palpação profunda. Extremidades normoperfundidas, edema (+/4+) em maléolo medial esquerdo.

DISCUSSÃO

LACUNAS ENCONTRADAS NO EXAME FÍSICO  REGISTRADO NO PRONTUÁRIO
Exame de pele e fâneros
Palpação do baço
Pesquisa de macicez móvel
Medidas de peso e altura

LISTA DE PROBLEMAS LEVANTADOS
- Ascite a esclarecer
- Síndrome consumptiva
- Sintomatologia respiratória (dispneia + tosse) e alterações de ausculta pulmonar (Derrame pleural? Pneumonia?)
- Incapacidade funcional pós-AVE
Melasma (ou vespertílio?)

HIPÓTESES DIAGNÓSTICAS
- Topográficas: Comprometimento de sistemas digestivo (fígado), respiratório e neurológico
- Sindrômicas: Ascite por hipertensão portal; síndrome consumptiva; síndrome infecciosa; ascite neoplásica
- Etiológicas: Hipertensão portal - esquistossomose, cirrose; síndrome consumptiva + infecciosa: Aids, tuberculose extrapulmonar; neoplasia: carcinomatose peritoneal; pneumonia hospitalar/derrame pleural.

 EXAMES COMPLEMENTARES
Conforme prontuário
- Exame do líquor: Glicose 39,60; Proteínas 602,58; Cloreto 119. Aspecto límpido, incolor; 2 hemácias; 1 leucócito/mm3; culturas sem crescimento.
- Exame de urina: células epiteliais (++), 01 piócito por campo; 03 leucócitos, 02 hemácias, muco ++, bactérias +.  
- Hemoculturas (3): germes leveduriformes/sem crescimento
- Urocultura: sem crescimento bacteriano.
- Exame do líquido pleural: Glicose 79,5; proteínas 6,1; LDH 695,9; amilase 74,8; Colesterol total; triglicerídeos 34,2; albumina 3,43. Intensa reação leucocitária, ausência de bactérias.
- Ultrassonografia de abdome: esteatose hepática; ascite; derrame pleural à direita.
- Biópsia peritoneal laparoscópica: tuberculose.

PESQUISA DAS RESPOSTAS ÀS DÚVIDAS SURGIDAS DURANTE A DISCUSSÃO DO CASO
Qual a probabilidade de ocorrer cirrose por esteatohepatite não-alcoólica (NASH)?
- O risco de fibrose avançada em pacientes com NASH permanece incerto - Uma meta-análise com 11 estudos buscou avaliar a progressão para fibrose em 366 pacientes com NASH, verificando-se que 132 (36%) pacientes progrediram para fibrose, 158 (46%) permaneceram estáveis e 76 (21%) apresentaram melhora. 
- Aparentemente, pacientes com esteatose hepática simples pela biópsia possuem baixo risco de desenvolver fibrose significativa, enquanto pacientes com esteatohepatite não-alcoólica possuem maior risco. 
- Alguns pacientes com fibrose apresentaram regressão da doença. 
Quantos pacientes com esteatose hepática não-alcoólica evoluem para NASH? 
- A doença hepática gordurosa não-alcoólica (NAFLD) tem prevalência estimada na população geral dos Estados Unidos atualmente em 20%, enquanto a de esteato-hepatite não alcoólica (NASH) é de cerca de 3,5-5%. 
A doença hepática não-alcoólica (EHNA) é um distúrbio metabólico multifacetado que representa um espectro de doenças, variando de esteatose sem lesão específica (o que é considerado relativamente benigno) a esteato-hepatite não alcoólica (NASH) 
A NASH é responsável por cerca de 13% de todos os casos de carcinoma hepatocelular
- Fatores de risco conhecidos são obesidade, hiperglicemia, diabetes tipo 2, hipertensão arterial e hipertrigliceridemia.  
- Os pacientes afetados são geralmente assintomáticos, e podem procurar atenção médica por causa dos níveis elevados das transaminases, aumento dos níveis de fosfatase alcalina, hepatomegalia, ou alguma combinação destes
- A NAFLD continua a ser um diagnóstico de exclusão, feita por eliminação de outras doenças do fígado (McCULLOUGH, 2006).
O que leva a melasma em homens jovens? 
- Considerando que o paciente apresenta melasma e não vespertílio em asa de borboleta, chegou-se à impressão de que estas manchas malares hipercrômicas são de melasma. 
- Este pode ser causado por fatores hormonais (mais comuns em mulheres), exposição solar (sobretudo a radiação ultravioleta), fatores genéticos, cosméticos, tireoidopatias, fototoxicidade ou alguns medicamentos, como agentes antiepilépticos (especialmente a fenitoína) e terapia com dietilestilbestrol, uma medicação usada no tratamento do carcinoma de próstata (VACHIRAMON et al., 2012)
- Em homens, a principal etiologia do melasma é a exposição solar - no paciente em questão, o melasma pode ter sido provocado pela exposição solar, uma vez que ele vive no campo e costumava andar à cavalo, e pela utilização da fenitoína. 
- Também se poderia considerar a história familiar como possível etiologia para o melasma, no entanto, esse dado não foi coletado nos antecedentes familiares, ao realizar a anamnese do paciente.

PESQUISA SOBRE POSSIBILIDADES DIAGNÓSTICAS
Quais as hipóteses diagnósticas para este jovem com ascite?
- Foi realizada uma breve revisão da literatura através de uma pesquisa na PubMed com limites temporais de 2000 a 2015. Os termos usados foram “ascites” AND “diagnosis” AND “systematic review”. Selecionaram-se os resumos dos artigos em cada um desses cruzamentos em duplas. Através da leitura dos resumos, foram selecionados os artigos que enfocavam particularmente o diagnóstico de quadros de ascite e lidos na íntegra. As listas de referências dos estudos previamente selecionados na busca por via eletrônica foram pesquisadas manualmente para identificar mais estudos relevantes. Estudos com pacientes pediátricos foram excluídos. As informações obtidas através desta busca foram as seguintes:
- Cirrose hepática e hipertensão portal representam aproximadamente 85% de todas as causas de ascite (BIRNES et al., 2010). 
- Outras causas de ascite (não-cirróticas) podem incluir trombose venosa portal, linfoma, lesão abdominal linfática com obstrução, insuficiência renal, pancreatite, tuberculose peritoneal, ou doença maligna com implantes peritoneais, insuficiência cardíaca congestiva geralmente associada com hipertensão pulmonar, pericardite constritiva, síndrome de Budd-Chiari e obstrução de veia cava inferior.  
- Ascite de natureza maligna, que é encontrada em 10% dos casos, pode ocorrer como resultado de qualquer doença neoplásica com metástase peritoneal, mas é mais comum por câncer de pulmão, ovariano, gástrico, pancreático ou câncer de cólon. 
- Mais de 20% dos casos de ascite maligna tem como origem um tumor de origem desconhecida (MOORE; VAN THEIL, 2013).
Fonte: Huang et al. (2014)

DIAGNÓSTICO DEFINITIVO: TUBERCULOSE PERITONEAL
- Tuberculose peritoneal (TBP) ocorre em até 3,5% dos casos de TB pulmonar e compreende 31-58% dos casos de tuberculose abdominal
- TBP entre todas as formas de TB varia de 0,1% a 0,7% no mundo todo
- Associação frequente entre TBP e cirrose tem sido descrita
- Outros grupos de pacientes com maior risco de desenvolver TBP incluem pacientes com insuficiência renal crônica em diálise peritoneal ambulatorial contínua (CAPD) e pacientes com HIV, neoplasia subjacente, diabetes mellitus
- Há notável semelhança entre esta doença e carcinoma do ovário, carcinomatose e complicações da ascite por hipertensão portal
- O diagnóstico de TBP é um grande desafio: natureza insidiosa, variabilidade da apresentação, limitações dos testes de diagnóstico disponíveis; falta de recursos clínicos específicos e também à produção limitada de os testes de diagnóstico mais utilizados; difícil isolamento de micobactérias a partir do fluido ascítico e frequentemente uma laparoscopia é necessária para o diagnóstico (SANAI; BZEIZI, 2005)
- Um alto índice de suspeição é necessário quando há ascite inexplicável, particularmente em pacientes de alto risco
- Métodos de diagnóstico da TBP, como imagens e cultura do líquido ascítico, podem falhar na confirmação ou exclusão do diagnóstico em casos clinicamente suspeitos – nestes casos, a laparoscopia com biópsia fornecerá o diagnóstico (SAFARPOR et al., 2007)
- TBP é vista mais comumente em pacientes entre 35 e 45 anos de idade
- Há orrelação significativa entre a situação socioeconômica e prevalência de TBP
- Ingestão de leite não pasteurizado também pode ser outra razão para o aumento da prevalência da doença nas populações rurais
- Geralmente, a infecção ocorre pela disseminação hematogênica de um foco pulmonar primário de tuberulose, que chega ao peritônio e pode permanecer em fase de latência, podendo ser reativado
- A TBP também pode ocorrer por disseminação hematogênica de TB  pulmonar ativa ou de TB miliar
- Mais de 90% dos pacientes com TB peritoneal apresentam ascite no início da manifestação da doença, enquanto que o restante apresenta ascite após uma fase "seca" mais avançada, representando a forma fibroadesiva da doença (SHETH et al., 2016)
- Com base em uma revisão sistemática da literatura, a TBP deve ser considerada no diagnóstico diferencial de todos os pacientes com ascite linfocítica inexplicável ​​e aqueles com um gradiente soro-ascite de albumina elevado 
- Biópsia peritoneal é o  exame padrão-ouro para o diagnóstico.

REFERÊNCIAS 
VACHIRAMON, V. et al. Melasma in men. Journal of cosmetic dermatology, 11 (2): 151-157, 2012.
BYRNES, V. et al. Tuberculous Peritonitis. UpToDate. Disponível em: http://www.uptodate.com/contents/tuberculous-peritonitis?source=search_result&search=tuberculosis&selectedTitle=25%7E150. Acesso em: 29 ago 2016.
HUANG, L. L.; XIA, H. H.; ZHU, S. L. Ascitic Fluid Analysis in the differential Diagnosis of Ascites: Focus on Cirrhotic Ascites. J Clin Transl Hepatol. 2(1):58-64, 2014
SHETH, S. G. et al. Natural history and management of nonalcoholic fatty liver disease in adults. UpToDate. Disponível em: https://goo.gl/qFuSn2. Acesso em: 29 ago 2016.
MOORE, C.M;Van THIEL, D.H. Cirrhotic ascites review: Pathophysiology, diagnosis and management. World J Hepatol.  27;5(5):251-63, 2013
MUKHERJEE, S. et al. Ascites. DynaMed. Disponível em: https://goo.gl/3agS6S. Acesso em: 29 ago 2016.
McCULLOUGH A. J. Pathophysiology of nonalcoholic steatohepatitis. J Clin Gastroenterol.  40 Suppl 1:S17-29, 2006.
SAFARPOR, F. et al. Role of laparoscopy in the diagnosis of abdominal tuberculosis. Saudi J Gastroenterol. 13(3):133-5, 2007.
SANAI, F. M.; BZEIZI, K. I. Systematic review: tuberculous peritonitis: presenting features, diagnostic strategies and treatment. Aliment Pharmacol Ther. 22(8):685-700, 2005.

Figura: Aparência típica da tuberculose peritoneal, incluindo ascite com líquido cor de palha, pequenos nódulos múltiplos esbranquiçadas espalhados pelo peritônio e espessamento omental (Fonte: SAFARPOR et al., 2007)