20 de março de 2017

Devolutiva: I Prova de História da Medicina e da Bioética - 2016.2


(4) O resgate das raízes da medicina hipocrática pode contribuir para a boa prática médica atual? Por quê?
Questão aborda temas das aulas 4 e 12
Sim, nos seguintes aspectos:
- A base da semiologia médica atual foi criada na medicina hipocrática: exploração do corpo (inspeção, palpação e ausculta), conversa com o paciente (anamnese) e entendimento sobre o problema clínico (raciocínio diagnóstico). Hipócrates mostrou quão importante era observar e registrar cuidadosamente os sintomas e o desenvolvimento da doença – aspectos que devem estar presentes na boa prática médica atual, apesar do grande desenvolvimento tecnológico em termos de exames complementares.
- A filosofia hipocrática na provisão de cuidados de saúde centrou-se no modelo holístico de atendimento, aplicando normas éticas que ainda são válidas hoje. Hipócrates pregou uma base ética para a prática médica e recebeu o crédito pelo juramento que o médico atual faz na sua colação de grau em quase todo o mundo. Os médicos modernos juram através de alguma versão do Juramento de Hipócrates, o que os obriga a servir aos melhores interesses dos pacientes, com foco na prevenção e respeito à privacidade pessoal. É a ética profissional e padrões deontológicos que são respeitados e observados até hoje pelos bons médicos.
- O médico humanitário de hoje é descendente de Hipócrates, que solidificou a visão da medicina como sacerdócio, e a visão do médico como aquele que busca o bem-estar do próximo. É a chamada medicina centrada no paciente, que deve fazer parte da atuação do médico contemporâneo.
- Na medicina hipocrática, a atitude do médico perante o paciente baseava-se no modelo da beneficência e da não-maleficência. Dizia Hipócrates: “Deves ajudar o paciente, ou ao menos não prejudicá-lo”. O médico atual deve sempre lembrar que seu dever prioritário é ajudar e não prejudicar o paciente.
- Conexão dos cuidados de saúde com o ambiente: a busca do equilíbrio entre o homem e seu meio, considerando-se que a relação com o ambiente é um importante aspecto do diagnóstico e da terapêutica, foi um preceito da medicina hipocrática. Em seu livro “Dos Ares, Águas e Lugares”, Hipócrates já assinalava que ingerir alimentos ruins e água ruim causaria doenças, e que a qualidade do ar influenciava a saúde, e que viver em locais poluídos, com muitos mosquitos, etc., poderia originar doenças.
- Atenção ao prognóstico médico: A previsão da evolução do paciente baseada na observação do desenvolvimento da doença foi um passo importante na história da medicina, realizada por Hipócrates, que ensinava que os médicos deveriam identificar doenças que responderiam ao tratamento e doenças que não responderiam.
- Valorização da alimentação na recuperação do doente: Hipócrates dava muito valor à alimentação no tratamento. Atribui-se a ele a frase “Seja o teu alimento o teu medicamento e seja o teu medicamento o teu alimento”.
- Reconhecimento do potencial efeito lesivo de algumas ações terapêuticas no processo de cura. Ele condenou o intervencionismo terapêutico exagerado, o que é importante para o médico atual no sentido de reduzir problemas de iatrogenia diante do arsenal terapêutico tão extenso e diversificado disponível hoje.

(5) Quando e como, na História, as primeiras noções de “contágio” foram conjeturadas?
Questão aborda temas das aulas 5 e 6
Girolamo Fracastoro (1475-1553) foi o primeiro a mencionar a noção de “contágio” na História da Medicina, precisamente no século XVI. Observando as epidemias de sífilis, peste e tifo, que devastaram a Itália no século XVI, Fracastoro introduziu sua própria teoria da doença, a teoria do contágio. Portanto, a teoria de Fracastoro é considerada a primeira declaração da teoria contagiosa das doenças, três séculos antes das pesquisas de Pasteur e Koch. Na Antiguidade, a hipótese da contagiosidade de certas enfermidades já tinha sido registrada pelo historiador grego Tucídides, que mencionou a noção de contágio na Peste de Atenas em sua obra “A Guerra do Peloponeso” (428 a.C.). Também Athanasius Kircher, um padre jesuíta, que não era médico,  dedicava-se a todas as novidades científicas da época, e escreveu  o livro "Pesquisa físico-médica sobre a doença contagiosa que se chama de peste" em 1658, afirmando que “todo contágio pressupõe putrefação”. Contudo, a teoria da contagiosidade de Girolamo Fracastoro transcendeu o tempo e o espaço se constituindo em legado à humanidade.

(6) Como eram, de forma geral, as práticas de diagnóstico e tratamento médicos à época do Renascimento?
Questão aborda tema da Aula 5
Os métodos de diagnóstico durante o Renascimento não foram muito diferentes dos medievais. Os médicos não tinham ideia de como curar doenças infecciosas. As tentativas ineficazes no tratamento de doenças incluíam ritos de magia e superstição. Praticava-se o “toque real”, em que o rei Carlos II tocava as pessoas doentes na tentativa de curá-las de escrófula (tuberculose ganglionar). Houve desenvolvimento progressivo da química e da farmácia, unindo as drogas descobertas no Novo Mundo às informações dos antigos e à alquimia dos árabes, mas a terapêutica ainda era essencialmente baseada na teoria humoral mediante sangrias, clisteres e dietas.

(7) Comente a célebre frase “... o laboratório é o templo da ciência da medicina” contextualizando-a com uma fase importante do desenvolvimento da Medicina.
Questão aborda temas das aulas 7 e 10
O desenvolvimento da patologia e da bacteriologia de base científica, assim como dos serviços de laboratório clínico no final do século XIX, levou ao desenvolvimento do diagnóstico e, deste, à busca das causas das doenças. Para Claude Bernard, não bastava observar um fato, era preciso estudá-lo sob as condições controladas de um laboratório, e cunhou esta frase de que “... o laboratório é o templo da ciência da medicina”. Este era o espírito reinante na época, ou seja, no final do século XIX, com o advento da biologia científica, da patologia celular, da bacteriologia, da radiologia, da pesquisa experimental, passando-se a adotar uma a concepção reducionista do processo de adoecer (reducionismo mecanicista – a doença era vista como um “defeito na máquina humana”, ideia característica do Modelo Biomédico de atenção à saúde). Essas novas descobertas, tanto anatomopatológicas quanto bacteriológicas, terminaram por conferir uma compreensão unicausal às doenças: pensava-se que a cada doença corresponderia um agente etiológico, que tinha natureza biológica. No início do século, XX, o paradigma Flexneriano intensificou esta concepção, quando a doença passou a ser considerada um processo essencialmente biológico, enquanto as dimensões social, cultural e econômica não eram levadas em conta como fatores implicados no processo de saúde-doença.

(8) Qual foi a notável contribuição de Ignaz Semmelweis para a teoria microbiana das doenças?
Questão aborda tema da aula 6
Ignaz Semmelweis demonstrou a imprescindível necessidade da lavagem das mãos como medida preventiva de infecções, antes mesmo de Joseph Lister preconizar o uso de práticas de assepsia e antissepsia em procedimentos cirúrgicos, e também antes da descoberta dos microrganismos. Semmelweis forneceu o que seria a primeira evidência de que a limpeza de mãos contaminadas através do uso de um antisséptico reduzia a transmissão de doenças na assistência à saúde. Este médico vienense gerou muita polêmica na época (século XIX), ao relacionar seus achados diagnósticos à infecção hospitalar das puérperas (febre puerperal) e, sobretudo quando passou a defender a antissepsia e lavagem das mãos dos médicos, estudantes e pessoal de enfermagem antes de eles realizarem partos na maternidade. Após muitos experimentos, Semmelweis escolheu o hipoclorito de cálcio como desinfetante capaz de remover "venenos cadavéricos" em 1847. Com a adoção desta medida, a mortalidade materna reduziu significativamente na maternidade de Viena.

(9) Em que pontos do Código de Ética Médica há reflexos diretos do chamado Imperativo Categórico de Kant? Explique.
Questão aborda temas das aulas 9 e 13
No Iluminismo, a obra de Immanuel Kant foi a base para a construção da contemporânea filosofia dos direitos humanos, na forma de Imperativos Categóricos:  
(a) o ser humano é o fim em si mesmo, e não o meio;  (b) necessidade de haver autonomia do sujeito enquanto ser racional. O chamado imperativo categórico proposto pelo filósofo alemão baseava-se no pressuposto de que toda ação humana, para ser ética, deveria ser assim condicionada: “(...) age de maneira tal que possas também querer que a máxima de teu agir se transforme em Lei universal da natureza (...)”
(a) Pessoas com fim e não como meio na medicina e nos processos de desenvolvimento científico – No Brasil, o Código de Ética Médica trata deste preceito no Artigo 1o., nos seguintes incisos:
XXIII - Quando envolvido na produção de conhecimento científico, o médico agirá com isenção e independência, visando ao maior benefício para os pacientes e a sociedade.
XXIV - Sempre que participar de pesquisas envolvendo seres humanos ou qualquer animal, o médico respeitará as normas éticas nacionais, bem como protegerá a vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa.
XXV - Na aplicação dos conhecimentos criados pelas novas tecnologias, considerando-se suas repercussões tanto nas gerações presentes quanto nas futuras, o médico zelará para que as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma razão vinculada a herança genética, protegendo-as em sua dignidade, identidade e integridade.
(b) Autonomia no atual Código de Ética Médica – Artigos 22 e 24
No Brasil, o código de ética estabelece uma relação do profissional com seu paciente, na qual o princípio da autonomia deve ser exercido, ao determinar que é vedado ao médico efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e consentimento prévios do paciente ou responsável, salvo em situações de perigo iminente de vida.
É vedado ao médico:
Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.
Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.

(10) Poucas pessoas estão cientes de controvérsias éticas que cercaram a obra de Louis Pasteur. O que você sabe sobre condutas censuráveis atualmente em relação às pesquisas de Pasteur?
Questão aborda temas da aula 6
As realizações de Louis Pasteur o classificam como um dos maiores cientistas de todos os tempos. Ele sempre foi considerado o “pai da teoria microbiana”, apesar das controvérsias sobre suas descobertas que surgiram principalmente em um livro publicado em 2002 por Gerald Geison (“A Ciência Particular de Louis Pasteur”), que tenta uma “desconstrução” do mito pasteuriano, questionando sua integridade científica. O grande pesquisador francês do século XIX aparentemente mentiu sobre seus métodos científicos, apropriou-se de uma ideia de um outro cientista concorrente e realizou um experimento humano que seria considerado antiéticos, se fosse realizado hoje.
O professor de História de Princeton, Gerald Geison, um dos principais estudiosos da obra de Pasteur, descobriu exemplos do que se poderia chamar de má conduta científica no estudo da vacina contra o antraz em ovinos e na primeira vacinação de uma criança contra a raiva. Gerald Geison observou que os cadernos de anotações de Pasteur, tornados públicos após a morte de seu neto, que era detentor dos registros de bancada do avô, revelaram que este tinha manipulado dados de pesquisas para ajustá-los às suas próprias hipóteses de investigação. Pasteur havia instruído sua família para jamais tornar públicas as anotações que fazia em seu laboratório de pesquisa, um pedido que foi atendido até que os manuscritos privados foram finalmente entregues à Bibliotheque Nationale em Paris, após a morte de seu último descendente, o neto Pasteur Vallery-Radot, tornando-se, então, disponíveis para o público no início dos anos 1970.
Quanto à vacina contra o antraz, Pasteur parece ter deliberadamente enganado a comunidade científica sobre a natureza precisa da vacina que ele usou. Outro exemplo de conduta questionável diz respeito ao primeiro uso humano da vacina contra a raiva. Em 1885, Joseph Meister, um camponês de nove anos de idade, foi levado à casa de Pasteur após ter sido picado por um cão que tinha sinais de raiva. Mesmo sem saber se o menino estava infectado ou não, Pasteur decidiu administrar sua nova vacina contra a raiva na esperança de salvar a vida do garoto. Joseph Meister sobreviveu e, três meses mais tarde, Pasteur publicou um artigo relatando que sua vacina contra a raiva havia sido testada em 50 cães sem uma única falha antes de usá-la para tratar o menino, que sobrevivera. Mas Geison descobriu, através da leitura dos seus cadernos de anotações de laboratório, que isso não fora verdade. Pasteur tinha testado uma vacina em cães, mas não tinha sido a mesma usada em Meister. O método que ele usou no menino consistiu em injeções de doses sucessivamente mais fortes de vírus da raiva. Esta abordagem estava sendo testada em cães de laboratório naquele momento em que a experiência humana foi feita, mas Pasteur ainda não tinha resultados conclusivos do experimento nos animais para mostrar que a técnica realmente funcionava e que era segura em seres humanos. O próprio assistente de Pasteur, o médico Émile Roux se opôs a participar da aplicação da nova vacina no menino por razões éticas.
Por outro lado, também há menção na literatura a um suposto plagiarismo por parte de Pasteur em relação ao trabalho de outro pesquisador francês, Antoine Bechamp, um dos biólogos franceses mais proeminentes daquela época, e que provou cientificamente a existência dos germes antes de Pasteur. Depois de uma controvérsia com Béchamp, a teoria de Pasteur acabou ganhando proeminência, após ele ter adulterado os resultados de Béchamp e publicá-los como se fossem seus, sequer citando o trabalho do biólogo. Pasteur ficou mais célebre ainda e ganhou o título de benfeitor da humanidade, enquanto Béchamp foi esquecido pela história.

Imagem: Um médico examinando um frasco de urina trazido por uma jovem. Pintura a óleo atribuída a um seguidor alemão de Gerrit Dou. Wellcome Library no. 47479i