A aula introdutória do módulo de
História da Medicina e da Bioética deste novo semestre realizou-se por meio de
uma discussão em grupo, que passou a ser uma ferramenta potencialmente útil ao
aprendizado no módulo desde o semestre passado, por sugestão dos próprios
alunos. Esta foi uma mudança metodológica importante na disciplina, promovendo
a substituição das aulas teóricas expositivas habituais pela técnica da
"sala de aula invertida". Esta consiste em realocar as atividades de
aprendizagem e redistribuir os tempos de estudo. Diferentemente dos modelos
tradicionais, o contato com o conteúdo de base (instrução direta) acontece fora
do espaço-tempo da sala de aula, por meio de vídeos, arquivos de áudio, textos
e outros. Em sala, o tempo é empregado na discussão e debate sobre os
conteúdos, na resolução de questões, no desenvolvimento de projetos ou outras
atividades práticas e de aplicação dos conceitos.
Destaquei a minha expectativa docente de que todos os alunos
participassem da discussão, e eles começaram a contribuir espontaneamente com suas ideias a respeito
dos motivos para estudar a história da medicina. Indiquei que esperava que a
dinâmica e as atividades tivessem a participação plena da turma, o que poderia incluir
convites para expressão de estudantes que não se manifestassem espontaneamente,
mas isso acabou não sendo necessário.
Assim, foi lançada a principal pergunta
norteadora da discussão: “Por que estudar História da Medicina e da Bioética?”
Magno afirmou que uma das razões para o estudo desta matéria seria entender os
modelos de prática médica existentes em diferentes países. Em seguida, houve a
participação de Samuel, que considerou serem diversos os modelos de saúde
desenvolvidos ao longo dos diferentes momentos da história, ou seja, os modelos
variaram conforme a época, exemplificando sua afirmação através das mudanças que
ocorreram na prática médica à época da Revolução Industrial, quando a prática
médica foi completamente diferente da que existe atualmente, mas muito mais
distinta ainda da que ocorreu na Idade Média.
Hannimam destacou que a prática médica
reproduz os desafios enfrentados pelas sociedades em cada período histórico,
exemplificando com aspectos conflitivos contemporâneos relacionados ao trabalho
médico, como a chamada "medicina defensiva", expressão que surgiu nos
Estados Unidos nos anos 1990 e que se refere a um conjunto de ações dos médicos
para evitar processos na justiça movidos pelos pacientes insatisfeitos.
Hannimam também citou a questão de "prolongar a vida ou prolongar o
sofrimento", referindo-se à atual discussão bioética a respeito da obstinação
terapêutica, uma questão contemporânea denominada distanásia. Ele complementou
o pensamento afirmando que estas questões não existiam em outras épocas, e que
surgiram com as práticas que objetivam prolongar a vida a qualquer custo.
Eduardo cogitou a premissa de que
estudar a história da medicina contribui para não se repetirem erros do
passado, sobretudo em relação aos fatos nos quais os princípios éticos da
medicina foram gravemente transgredidos e que se tornaram emblemáticos na
história da bioética. Nesse raciocínio, ele acabou resgatando a máxima de que
“aqueles que não conseguem se lembrar do passado, estão condenados a
repeti-lo”, do filósofo George Santayana.
Felipe T. mencionou que a história da
medicina é dinâmica e sofre a influência
do contexto político de determinada época, constituindo um processo que está em
constante construção. Ele lembrou também da questão do
"aprimoramento" genético da espécie, ideia presente nos movimentos de
eugenia que ocorreram ao longo da história, e que se relacionaram a
determinadas correntes políticas e ideológicas, constituindo também uma questão
de grande relevo para a discussão bioética.
Diego M. fez duas perguntas que
pareceram retóricas, mas foram questionamentos
que mostraram uma reflexão relacionada ao próprio objeto de estudo da
história da medicina, referindo-se a como chegamos até o avançado estágio atual
de terapêutica médica, sendo esta uma das razões pelas quais precisamos estudar
a história da medicina. Rômulo complementou o pensamento de Diego, afirmando
que é difícil prever até onde chegará todo o avanço biotecnológico e que não é
possível prever as descobertas que ocorrerão daqui a 10 anos, referindo-se à
vertiginosa evolução dos meios diagnósticos e terapêuticos que se tem
presenciado desde a segunda metade do século XX, mostrando mais uma razão para
estudar a história.
Maria Luíza lançou a assertiva de que
frequentemente os avanços alcançados pelo desenvolvimento científico e
tecnológico acabam saindo do controle da Bioética, pois esta não dá conta de toda
a problemática suscitada pelo desenvolvimento biomédico. Nesse sentido, João
lembrou que o médico tem conhecimento técnico e atua dentro deste tecnicismo de
sua profissão, mas que sendo também um ser social, e portanto, produto de sua
cultura, é influenciado pelo ambiente ao qual pertence, o que ensejou a
inferência da necessária análise do contexto quando se estuda a evolução da
ciência médica.
Lucas N. questionou se existiria um
agente ou órgão internacional regulador da medicina quanto às ocorrências de
infrações bioéticas, ou se os diversos países teriam autonomia ilimitada, sem
um controle externo quanto à preservação da dignidade humana nas práticas
médicas de uma forma geral. Seguindo esse raciocínio, e buscando responder à
pergunta do colega, Magno cogitou se a Organização Mundial da Saúde (OMS) teria
gerência ou regulação nesse sentido, porém contemporizei que é preciso
considerar que, sendo esta uma organização internacional que lidera
normatizações referentes ao desenvolvimento da saúde de todos os povos, a OMS
monitora a situação da saúde pública no mundo, fugindo, portanto, ao seu escopo
de atribuições este papel específico de regulação bioética. Contudo, lembrei
que a Associação Médica Mundial, como confederação internacional e independente
que congrega Associações Médicas profissionais de muitos países, é um órgão
regulatório nesse âmbito, e que representa os médicos em escala global, é
responsável pelo desenvolvimento e aprovação da Declaração de Helsinki e de
suas atualizações posteriores. Contudo, só agora, ao escrever a narrativa desta
discussão, atentei para o papel da Organização das Nações Unidas (ONU) neste
âmbito, órgão que emitiu a Declaração Universal de Direitos Humanos e a
Declaração sobre a proteção das pessoas contra formas cruéis e degradantes de
tratamento. Portanto, a ONU tem a incumbência de cuidar do tema dos direitos
humanos e de torná-los concretos no seio da comunidade internacional,
estabelecendo que os seus estados membros devam criar mecanismos de controle
com vistas à proteção da integridade e dignidade humanas.
Maria Luíza destacou que o que é
considerado, ou não, como desrespeito à bioética pode ser relativo à cultura,
cogitando, assim, o conceito de relativismo cultural, que também permeia as
inúmeras situações conflituosas que envolvem a diversidade de elementos
culturais nas mais variadas regiões do planeta. Portanto, é necessário
considerar que os pressupostos bioéticos também são relativos à experiência
cultural de cada época e região geopolítica. Nesse sentido, Eduardo lembrou que
há diferentes legislações nos diversos países, como ocorre em relação à
eutanásia, que é legalizada em países como Holanda, Bélgica, Alemanha, França e
em alguns estados dos Estados Unidos, mas que é ilegal no Brasil.
Felipe T. lembrou de um fator histórico
de grande relevância na discussão em curso, e que é objeto de análise também da
história da medicina, ao representar uma importante “guinada” que originou o
pensamento científico no século XVII e marcou o avanço na visão de mundo vigente
até então, a chamada Revolução Científica. Esta será objeto de estudo da aula
sobre a medicina do Renascimento.
Magno cogitou se nesse nosso módulo de
história da medicina iria ser discutida a questão do título de doutor atribuído
aos médicos, tanto nacional quanto internacionalmente. Expliquei que
discutiremos esta noção em aulas posteriores, como a da História dos Códigos de
Ética Médica.
Passou-se, então, às seguintes
questões: Em todas as épocas houve médicos? Em todas as épocas houve medicina?
Diego G. respondeu que sempre houve agentes de cura que, mesmo diferentes dos
médicos que existem hoje, exerciam o papel de curadores, como os sacerdotes na
medicina mágico-religiosa. Felipe T. mencionou, então, que a medicina sempre
foi necessária pois sempre existiram doenças e sofrimento humanos, e desde
sempre se buscaram as razões do adoecimento e da morte, para combatê-los por
uma questão evolutiva de sobrevivência. Foram mostradas, então, através de
recurso visual, imagens sugestivas de trepanações cranianas datadas de mais de
3.000 anos, para ilustrar a existência de práticas curativas já entre os povos
primitivos. Estudos de paleontologistas e arqueólogos evidenciaram crânios com
sinais de consolidação de fraturas em forma de buracos esféricos, sugerindo a
realização de cirurgias rudimentares no crânio com possível objetivo de cura
ainda na Pré-História. Então, apresentaram-se novamente através do PowerPoint
assertivas a respeito da existência de medicina e de agentes de cura desde os
primórdios da vida humana no planeta, tais como “Em todo lugar e em todas as
épocas houve médicos” (W. Jaegger) e “Houve povos sem médicos, mas nunca houve
povos sem medicina” (Plínio, o Velho).
Em seguida, exibiu-se a mensagem de que “o estudo da história da medicina e da bioética faz parte da formação humanística do estudante de medicina”, lançando-se a pergunta do que eles entendiam por “Formação Humanística”. Raoni afirmou ser aquela relacionada à atenção ao ser humano, que está além dos aspectos mercadológicos ou do capital, enquanto Lucas mencionou ser o fato de se enxergar a pessoa como ser humano, com seus sentimentos, valores, crenças e princípios. Joele, por sua vez, colocou o adjetivo "humanística" no contexto da relação médico-paciente, não considerada somente no sentido de um meio para obtenção de um diagnóstico, mas na interação humana que faz o paciente se sentir valorizado e livre para se expressar. Igor complementou esse pensamento dizendo que a formação humanística tem estado cada vez mais presente nos cursos de medicina recentemente, como ocorre no nosso curso da UFPB, que após a reforma curricular de 2007, teve a inclusão dos módulos horizontais A (MHA). A referida mudança curricular foi fundamentada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em medicina e fundamenta-se no conhecimento de que a saúde está inter-relacionada com fatores sociais, como as condições de vida, habitação, família e comunidade. Diego lembrou, então, que esse contexto precisa ser considerado tanto no exercício do atendimento individual quanto no coletivo, uma vez que mesmo dentro de um mesmo país, existem diferentes culturas, exemplificando sua afirmação com a histórica Revolta da Vacina, que ocorreu no Rio de Janeiro no início do século passado, quando a população se rebelou diante das medidas governamentais para impor a vacinação compulsória, pois não entendia o fundamento ou os benefícios daquela medida. Lembrou ainda este aspecto não se reduz a um evento histórico, pois atualmente comportamentos da mesma natureza ainda podem ser vistos, mesmo de forma pontual, pois ainda há quem seja resistente à ideia de vacinar seus filhos. Clayton considerou que a formação humanística muitas vezes não encontra o seu contraponto no sentido da existência de melhores condições de trabalho para os médicos, e que não adianta que estes tenham a capacidade de ver a pessoa do paciente de uma forma integral e humanística, se muitas vezes não tem condições de realizar esse atendimento abrangente baseado na pessoa em virtude da precarização das condições laborais. Joele finalizou a discussão afirmando que desde tempos remotos até a contemporaneidade, o estudo da história da medicina mostra como se realizaram descobrimentos importantes que possibilitaram o alcance dos recursos diagnósticos e terapêuticos avançados que são disponíveis hoje, embora estes não sejam acessíveis a todos.
Concluiu-se a discussão com a mensagem de que é necessária e desejável a obtenção da consciência histórica pelo estudante de medicina, e por meio desta consciência, deve-se analisar e julgar os fatos ocorridos na história com a devida perspectiva, pois os eventos históricos devem ser vistos no contexto do conhecimento de cada época, e não à luz do que se conhece hoje. Da mesma forma, precisa-se entender que o surgimento de novos paradigmas aplicados à medicina vai modificando os modelos de prática médica, que estão ligados a diversos condicionamentos complexos, e de natureza, ao mesmo tempo socioeconômica, cultural e política. Portanto, o estudo da história da medicina e da bioética tem importância cultural, pragmática e ética, além de formativa.
Fonte da imagem: Elaboração da autora.