Rilva Lopes de Sousa Muñoz
A ética é uma
disciplina filosófica referente às noções do que é bom e ruim, certo e errado. Bioética
é a aplicação da Ética no campo das Ciências da Vida. Os profissionais da ética e da bioética fazem perguntas relevantes para a reflexão dos profissionais da saúde, autoridades, pensadores de políticas públicas e da academia, enfim, da sociedade como um todo. Os bioeticistas fazem mais perguntas do que fornecem respostas.
Lopes (2014)
destacou, em seu artigo "Bioética: Uma breve história - de Nuremberg
(1947) a Belmont (1979)", uma frase de Epiteto (55-135 dC), filósofo
estoico que viveu no início da era cristã, que diz: “Primeiro, aprenda
o significado do que você diz, e só então diga”. O referido autor
comenta que existem termos que parecem simples, mas quando se deseja
defini-los, surge certa confusão, lembrando também que Santo Agostinho
(354-430 d. C.) falou sobre isso, a propósito do tempo, quando questionou, em
sua obra "Confissões": “O que é o tempo?’ Ele refletiu, surpreso, e
disse: “Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se me
perguntam, e quero explicar, já não sei.” (LOPES, 2014). Então,
questiona-se, em analogia à pergunta desse filósofo: o que é a bioética e o que esta nova disciplina aportou ao corpo de
conhecimentos humanísticos? Por outro lado, quem se qualifica como
“bioeticista”?
Quando
Hipócrates escreveu sua máxima primum non nocere ("primeiro,
não faça mal"), ele estava lidando com um dos principais problemas ainda
enfrentados pela medicina: o papel e o dever do médico. Com o advento da
ciência no século XVII, surgiu um campo acadêmico para refletir não apenas as
questões importantes e antigas levantadas pela prática da medicina, mas também
os problemas éticos gerados pelo rápido progresso na tecnologia e na
ciência. Quarenta anos após o surgimento desse campo, a bioética agora reflete
as profundas mudanças na medicina e nas ciências da vida.
A difusão e o
impacto na sociedade e no cotidiano da vida humana da tecnologia levaram a uma
crescente conscientização de que ciência e tecnologia não podem ser
consideradas acima ou além do domínio dos julgamentos de valor e, portanto, da
ética. Foi assim que a Bioética surgiu em resposta ao desconcertante
desenvolvimento pós-guerra, empreendimentos em biologia, medicina e
biotecnologia. Até agora, os historiadores não têm pesquisado neste campo. A
maioria dos registros sobre o “nascimento” da Bioética foi escrita pelos
próprios bioeticistas ou por cientistas sociais, alguns dos quais tornaram-se
bioeticistas.
Os
bioeticistas fazem perguntas no contexto da medicina moderna e da saúde. Eles
se valem de uma visão pluralista de tradições, tanto seculares quanto
religiosas, para gerar discursos civis sobre questões controversas de diferença
moral e outras com as quais a maioria das pessoas concorda. Eles fomentam o conhecimento público e a compreensão da filosofia moral e dos
avanços científicos na área da saúde. Eles observam como a tecnologia médica
pode mudar a maneira como experimentamos o significado de saúde e doença e,
finalmente, a maneira como vivemos e morremos.
A bioética é
multidisciplinar. Combina filosofia, teologia, história e direito com medicina,
enfermagem, política de saúde e humanidades médicas. Insights de várias
disciplinas são trazidos para a interação complexa da vida humana, ciência e
tecnologia. Embora suas questões sejam tão antigas quanto a humanidade, as
origens da bioética como um campo são mais recentes e difíceis de capturar em
uma única visão. Wilson (2013) considera que existe uma relutância dos
historiadores em se envolver com a Bioética, com base em uma leitura incorreta
do campo, que é apenas redutível à ética aplicada, e se ignoram suas
perspectivas históricas. Os historiadores acreditam que sua tarefa é
recuperar a vida de indivíduos, culturas ou grupos sociais do passado e não se
sentem à vontade em extrapolar isso para o presente, uma vez que a Bioética é
uma disciplina recente. Contudo o mesmo autor considera que a Bioética, como um
ponto de encontro interdisciplinar, deveria interessar aos historiadores, que
poderiam contribuir com os debates bioéticos sob uma nova perspectiva. Os
historiadores consideram que descontextualizar a ética na medicina seria
crucial para ajudar os bioeticistas a adquirir autoridade profissional e
pública.
Historiadores
da ciência e da medicina documentaram questões morais associadas a práticas
médicas e biológicas específicas - por exemplo, experimentos envolvendo seres
humanos, vivissecção, vacinação compulsória, aborto e transplante de órgãos -
mas poucos têm procurado se envolver com a bioética. A única colaboração
real ocorreu no final da década de 1970, quando vários historiadores americanos
discutiram o contexto histórico das questões éticas contemporâneas em revistas
e instituições bioéticas (WILSON 2013).
Uma cronologia
de alguns eventos marcantes mostra a década de 1970 como a do florescimento da
Bioética. As primeiras instituições bioéticas do mundo foram o Hastings
Center e o Kennedy Institute of Ethics, fundados
em 1969 e 1971, respectivamente. O primeiro de uma série de leis federais
e comissões de bioética foi criadao nos Estados Unidos em 1974, dando origem ao
influente Relatório Belmont, que resumiu os princípios fundamentais e
diretrizes promulgadas para experimentação em seres humanos, e que ficou pronto
em 1978. O mesmo ano de 1978 trouxe a importante The Encylopedia of
Bioethics. A visão de que a Bioética era uma forma de ética aplicada foi
lançada em 1979 no livro de Tom Beauchamp e James Childress, “Principles of
Biomedical Ethics”, texto fundamental, publicado em 1979 e que ajudou a
afiançar a operacionalidade do "principialismo", a ideia de que os
princípios éticos "universais" poderiam levar à resolução de casos
moralmente complexos. Beauchamp e Childress alegaram que os problemas éticos
poderiam ser resolvidos através da aplicação de quatro princípios: autonomia,
não maleficência, beneficência e justiça.
Portanto,
institucionalmente, a Bioética é um produto da década de 1970. Mas as
influências para seu surgimento são históricas, vêm de mais longe no tempo. De
fato, a ascensão de a Bioética carrega um marcador sistêmico da história
americana, implicando um impulso sociocultural que remonta à fundação da nação.
Como seus análogos históricos, bioeticistas fundadores expressaram profunda
preocupação com os avanços tecnológicos irrestritos na área biomédica, pelos
cientistas que constituíam parte de elite que celebra os indicadores de
“progresso”, incluindo o progresso tecnológico, industrial e até o que alguns
chamam de “revolução biológica” (STEVENS, 2014).
A raiz mais
contemporânea da Bioética está fundamentada nas décadas de 1950 e 1960. Os
turbulentos anos 1960 e seus legados marcantes de desafios à autoridade (por
exemplo, ativismo dos direitos civis, protestos contra a guerra do Vietnã,
ambientalismo, feminismo de segunda onda, direitos dos pacientes) foram
altamente influentes na ascensão e institucionalização da bioética.
Eles
apontam também para o impacto da conscientização humana, os escândalos
experimentais no pós-guerra, os infames casos de pesquisas com infração ética grave,
como os de Willowbrook e de Turskegee, assim como às revelações de Henry
Beecher em 1966 sobre 22 casos de estudos realizados no período pós-guerra que
continham violações éticas importantes.
Os três principais conjuntos de fatores que
concorreram para o surgimento e desenvolvimento da Bioética foram os seguintes:
(a) os
dilemas e escândalos envolvendo a pesquisa biomédica, mesmo após terem sido
firmados, na comunidade científica internacional, os princípios para regular a
pesquisa com seres humanos, a partir da Declaração de Helsinki, e após o
Julgamento de Nuremberg - exemplos emblemáticos de pesquisas que infringiram
gravemente a dignidade humana e a ética foram:
- Estudo Tuskegee
de sífilis não-tratada em homens negros, um projeto desenvolvido pelo Serviço
de Saúde Pública dos Estados Unidos ao longo de 40 anos (1932-1972);
- Estudo em que médicos
infectaram, propositadamente, com o vírus da hepatite B, cerca de 700 a 800
crianças com retardo mental, com o objetivo de desenvolver uma vacina;
- Estudo em que pesquisadores
injetaram células hepáticas cancerígenas em vinte e dois pacientes idosos e
senis em 1964 com o propósito de aprender mais sobre a relação do sistema
imunitário com o câncer.
(b) o rápido progresso científico na
área biomédica: os grandes e vertiginosos avanços científico-biotecnológicos
aliados à ausência de uma postura ética em relação ao uso dos recursos
biológicos vieram demonstrar que a ciência nem sempre se faz a favor da pessoa
- as normas éticas tradicionais tornaram-se insuficientes e, por vezes,
inadequadas, para a atualidade
c) A ampla mobilização da sociedade
civil organizada, em particular a norte-americana, em torno da transformação
dos valores sociais no Ocidente - A bioética é um produto típico da cultura da
segunda metade do século XX, quando movimentos sociais marcaram sua
participação ativa na discussão da agenda do bem-estar humano, tais como
liberdade, segurança, saúde e distribuição de recursos materiais.
Também foram importantes os dilemas
relacionados à assistência médica, como ocorreu na criação do Comitê de Seleção
de Hemodiálise de Seattle – “God Commission”).
Por outro lado, eventos mais gerais também foram propulsores do surgimento e desenvolvimento da Bioética. O
desenvolvimento da bomba atômica, por exemplo, também implicou no surgimento de uma política
da dimensão não neutra da ciência. A bomba atômica fez muitos cientistas
questionarem os usos da pesquisa científica. Outros fatores ligados à II Guerra Mundial, de forma semelhante, representaram marcos profundos na base sobre a qual se erigiu a Bioética.
Qual a influência da analogia nazista para os recentes debates
médicos sobre a eutanásia? A história da eugenia estaria sendo revivida nas
modernas tecnologias genéticas? E o que a história trágica da talidomida e sua
recente reintrodução para novos tratamentos médicos nos dizem sobre como os
governos resolvem dilemas éticos? São questões inquietantes que inevitavelmente remetem ao que já foi vivido no passado em relação aos funestos eventos da II Guerra.
No sentido dessas questões, a Bioética
na perspectiva histórica mostra como a compreensão da História da Medicina
ainda hoje desempenha um papel relevante na pesquisa e no pensamento político
na atualidade. Os pesquisadores passaram a ser vistos como o "Dr. Frankenstein", pois poucos haviam se disposto a alertar o público sobre os riscos morais de engenharia genética humana. O segundo exemplo histórico diz respeito ao debate público que se seguiu na década de 1970, quando começaram a se instituir medidas heroicas para neonatos prematuros ou com deficiências (STEVENS, 2014).
Aparentemente,
todos os dias a sociedade enfrenta um novo desafio ético levantado por uma
inovação científica. Engenharia genética humana, pesquisa com células-tronco,
transplante de face, biologia sintética - todos eram ficção científica apenas
algumas décadas atrás, mas agora são todos realidade. Como a sociedade
decide se essas tecnologias são éticas? Por décadas, os bioeticistas
profissionais serviram como mediadores entre um público ocupado e tomadores
de decisão, ajudando as pessoas a entender suas próprias preocupações éticas,
estruturando argumentos, desacreditando alegações ilógicas e levantando
questões promissoras. Esses bioeticistas operam em vários locais, como a tomada
de decisões em hospitais, instituições que realizam pesquisas com seres humanos
e a recomendação de políticas éticas ao governo. Contudo, os formuladores
de políticas estão menos inclinados a seguir o conselho de profissionais da bioética (bioeticistas), pois muitos debates bioéticos simplesmente se tornaram políticas
partidárias com duelos entre bioeticistas conservadores e progressistas (EVANS,
2012).
Embora essa crise esteja contida na tarefa de recomendar
ética ao governo, existe o risco de que ela se espalhe para as outras tarefas
conduzidas pelos bioeticistas. Os debates sobre bioética foram originalmente
dominados por teólogos, mas passaram a ser desenvolvidos posteriormente pelos profissionais emergentes da Bioética, devido ao envolvimento sutil e lento do governo como principal
consumidor de argumentos bioéticos. No entanto, após a década de 1980, as
opiniões do governo mudaram, fazendo argumentos bioéticos não parecerem tão
legítimos.
O transplante de órgãos, a diálise renal, os respiradores e as
unidades de terapia intensiva (UTI) possibilitaram um nível de atendimento
médico nunca antes alcançádo, mas esses avanços também levantaram dilemas
éticos assustadores que o público nunca havia sido forçado a enfrentar
anteriormente, como quando admitir um doente em uma UTI ou quando
tratamentos como diálise podem ser suspensos em doentes com doença renal terminal em cuidados paliativos. O advento dos contraceptivos e as técnicas seguras para realizar abortos também aumentaram os dilemas éticos.
Ao mesmo tempo, as mudanças culturais colocaram uma nova ênfase na autonomia e
nos direitos individuais, preparando o terreno para um maior envolvimento do
público e controle sobre os cuidados e tratamentos médicos.
Os debates públicos sobre o aborto, a liberdade contraceptiva e os
direitos dos pacientes têm ganhado força, e a bioética tornou-se uma área legítima
de atenção acadêmica. As mudanças culturais colocaram uma nova ênfase na
autonomia e nos direitos individuais, preparando o terreno para um maior
envolvimento e controle do público sobre os cuidados e tratamentos médicos.
Nos seus
primeiros anos, o estudo de questões bioéticas foi realizado por autores
de departamentos universitários tradicionais de religião ou
filosofia. Esses estudiosos escreveram sobre problemas gerados pela
nova medicina e tecnologias da época, mas não faziam parte de uma comunidade
discursiva que poderia ser chamada de "campo acadêmico". Individualmente, estudiosos trabalhando isoladamente, começaram a legitimar questões bioéticas que merecem rigoroso estudo acadêmico. Mas a bioética se
solidificou como um campo somente quando se alojou em instituições especificamente dedicadas ao
estudo dessas questões.
A bioética acadêmica nasceu com a criação do primeiro "centro
de bioética" mas, ironicamente, surgiu por meio da
criação de uma instituição que não fazia parte da academia tradicional. A
primeira instituição dedicada ao estudo de questões bioéticas foi um centro
independente de bioética, propositadamente removido da academia com suas
rígidas demarcações de estudo acadêmico. A instituição foi o Hastings
Center, fundado pelo filósofo e teólogo Daniel Callahan, juntamente com o
psiquiatra Willard Gaylin, que criaram a instituição para ser um centro
interdisciplinar dedicado exclusivamente ao estudo sério de questões bioéticas.
Com os departamentos acadêmicos funcionando como ilhas dentro de uma
universidade, parecia que um trabalho verdadeiramente interdisciplinar era
impossível. O Hastings Center foi fundado para criar um
espaço intelectual para o estudo dessas questões importantes sob múltiplas
perspectivas e áreas acadêmicas.
A segunda
instituição que ajudou a solidificar o campo da Bioética foi o Kennedy
Institute of Ethics, inaugurado na Universidade de Georgetown em 1971. Os
fundadores tinham objetivos semelhantes aos do Hastings Center,
apesar de colocarem seu centro na academia tradicional. Enquanto alojado
fora de quaisquer departamentos acadêmicos em particular, o Instituto Kennedy
parecia mais um departamento tradicional, oferecendo programas de graduação e
estabelecendo nomeações de professores segundo um modelo universitário.
A partir desse
começo modesto, o campo da Bioética explodiu, com dezenas de universidades
seguindo o exemplo, criando instituições cuja única função era o estudo de
questões bioéticas. Seu crescimento foi impulsionado pelo surgimento de
novas tecnologias, como o coração artificial e a fertilização in
vitro, além de novos desafios, como o do HIV/AIDS. A Bioética está agora
permanentemente no mapa acadêmico e no discurso público.
A Bioética continuará a se expandir e a ser considerada importante
porque as ciências biológicas continuarão em seu vertiginoso desenvolvimento.
Políticas éticas serão necessárias em todas as instituições. Códigos e leis,
nacionais e internacionais, políticas e profissionais, precisarão ser
desenvolvidos e, em seguida, continuamente aprimorados e atualizados. Não há
fim à vista para novos papéis para os profissionais que conhecem a bioética.
Referências
Evans JH. The
History and Future of Bioethics: A Sociological View. Oxford Scholarship
Online, 2012
Lopes AG.
Bioethics – a brief history: from the Nuremberg code (1947) to the Belmont
report (1979). Rev Med Minas Gerais 2014; 24(2): 253-264 2
Wilson D. What
can history do for bioethics? Bioethics 2013; 27(4):215-23
Stevens MLT.
The History of Bioethics: Its Rise and Significance. Reference
Module in Biomedical Research, 3rd edition. San Francisco State University: San
Francisco. Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/411c/465786abd8240a3b6e2745df1c9338f22c79.pdf
Imagem: https://www.europewatchdog.info/en/international-treaties