DEVOLUTIVA COM EXPLICITAÇÃO DE EXPECTATIVAS
DE RESPOSTAS PARA OS ALUNOS DO MÓDULO "HISTÓRIA DA MEDICINA E DA BIOÉTICA" / CCM / UFPB
1- Visualize a figura que se encontra no topo da presente postagem e
escreva sobre o que compreendeu a partir desta ilustração (Fonte: Dr. Craig Klugman*).
Estudar a história do desenvolvimento de
códigos de ética nos fornece um meio de entender como outras sociedades
enfrentaram questões éticas. Isso requer uma apreciação dos aspectos sociais,
culturais, econômicos e políticas do passado, do presente e, hipoteticamente,
do futuro, o que a maioria da turma fez.
Nestes quase 20 anos do século XXI, já são desmesuradas
as diferenças em relação a todos os séculos anteriores. No passado, cada sociedade
definiu suas expectativas de comportamento médico com base nas crenças
religiosas, o que foi um aspecto destacado pela maioria dos alunos.
Isso começou a mudar quando houve a separação
entre Igreja e Estado ao final da Idade Média. Na Idade Moderna, começaram a
surgir códigos de ética e houve a consolidação da profissionalização médica na
Europa.
Como resultado dos avanços científicos no
conhecimento médico durante o Renascimento e o Iluminismo, o treinamento e a
prática médica gradualmente começaram a se profissionalizar e reivindicar o
direito à autorregulação. Isso levou à criação dos primeiros códigos formais de
ética, como o de Thomas Percival (século XVIII). No mesmo século, o filósofo iluminista
Immanuel Kant ajudou a proporcionar avanços científicos com seus pensamentos
quanto a mudanças nas atitudes morais
das sociedades, uma vez que infere a importância de se pensar racionalmente e se
entende que a moral deve vir deste pensamento racional. É imperativo fazer o
que é certo, porque aquilo é fazer o que é correto. Assim, a filosofia moral de
Kant contribuiu decisivamente com o desenvolvimento da ética médica e da
bioética.
No presente, ainda sob o impacto desse
desenvolvimento humanístico, explodiram os avanços da tecnologia e da ciência,
que não são neutros, pois seus impactos sociais, políticos e morais tornaram-se claros rapidamente. Com esta evolução, vem a variável adicional de se avaliarem as
implicações éticas de avanços biotecnológicos que ainda não existem, ou coisas
que podem ter impactos que não podemos prever. A transferência
de consciência para computadores, um mundo administrado por robôs, tudo isso parece
cada vez mais plausível e possivelmente praticável no futuro. No entanto, não podemos sequer imaginar como
será o mundo daqui a 50 anos, um aspecto que foi discutido de forma marcante em
um dos nossos seminários, por ocasião da ideia de Ramon, de que possivelmente a
máquina substituirá o médico. Já vivemos em uma sociedade digital hoje e estamos observando os efeitos dessas novas tecnologias. Mas as máquinas poderiam
gradualmente substituir os médicos, usurpando seu conhecimento técnico e
cirúrgico? Sabemos que no futuro, os robôs farão algumas operações por
conta própria. À medida que a inteligência artificial continua a evoluir, os
algoritmos serão capazes de executar tarefas clínicas - como diagnosticar
doenças e propor condutas - muito mais rapidamente e com maior precisão do que
qualquer médico humano. Mas substituir o médico, isso é muito improvável e difícil de acontecer, embora
a Inteligência Artificial possa transformar o significado do que é ser médico. Como é possível que a incorporação da automação em um robô
ou um algoritmo, substitua um médico? Pode haver uma ética digital incorporada
pelos robôs? O que é ética? O que é moral? Uma máquina poderia ter emoções, sentimentos, compaixão, solidariedade? Não... Por outro lado, tecnologias digitais complexas exigem profissionais
competentes por trás dos robôs. Além disso, uma mesma doença pode ter sintomas
diferentes de acordo com a história de vida de um paciente, e não é possível
que uma máquina possa perceber isso. A vida é complexa demais para
ser manuseada completamente por máquinas e, além disso, acima de tudo, não seria ético. O ser humano só pode ser inteiramente cuidado por outro ser humano. É preciso ter uma alma para praticar o diagnóstico e o alívio do sofrimento.
2- “A
história é escrita pelos vencedores”: Esta é uma frase escrita
por George Orwell, um dos escritores mais influentes
do século XX, e mencionada por seu colega Thênio durante a aula de História da
Bioética em 16.09.19. Comente esta célebre citação, contextualizando-a no
escopo da história da Bioética.
Em 1945, na cidade alemã de Nuremberg, os
vencedores da II Guerra Mundial iniciaram o primeiro julgamento internacional
por crimes de guerra. Os nazistas foram acusados coletivamente por cometer crimes contra a paz, crimes contra a
humanidade (incluindo o recém-definido crime de genocídio na época), crimes de guerra no sentido
comum e em termos de experimentos atrozes envolvendo seres humanos. Contudo, o
ditado de que a história é escrita pelos vencedores é verdade quando se trata
da II Guerra. Os aliados são retratados até hoje como heróis que salvaram o
mundo inteiro dos males de Hitler e dos japoneses. No entanto, enquanto os
livros de história descrevem os aliados dessa forma, a realidade era muitas
vezes muito mais perturbadora e muito menos lisonjeira. Os “vencedores” têm o
poder de moldar narrativas históricas por meio de livros escolares, iconografia
pública, filmes e vários outros meios. Certamente esses meios são locais
poderosos para estabelecer ideologias políticas e moldar suposições sobre a
maneira como os eventos aconteceram. Entidades governamentais ou
"oficiais" podem explorar esse poder para alcançar seus próprios
fins. Sabe-se que os aliados também cometeram muitas atrocidades durante a II
Guerra Mundial, embora não haja dúvida de que o Eixo seguramente foi pior.
Contudo, os vencedores contaram apenas a sua versão. No entanto, essa versão predominante se articula com o poder, mais que com a vitória. Um exemplo da
história escrita pelos perdedores é o relato da Guerra do Vietnã. Embora seja
discutível se os EUA perderam essa guerra, eles certamente não a venceram, mas a esmagadora
maioria da documentação histórica da guerra vem dos EUA, que contam uma
“história mais conveniente”. Então, podemos enfatizar que “A história é escrita
pelos poderosos”, parafraseando a citação de George Orwell.
3- A repórter Jean Heller, da Associated Press, publicou no New York Times, em 26/7/1972, uma matéria denunciando um projeto de pesquisa que infringia gravemente a Bioética que conhecemos hoje. Houve grande impacto desta denúncia na sociedade. Explique que pesquisa foi esta e nomine os princípios bioéticos violados pelos pesquisadores.
O recorte da matéria a que se refere esta
questão está em inglês, mas no corte apresentado, está escrito “Tuskegee Study”
e ao se conhecer este caso emblemático da história da Bioética, não é
necessário tradução nenhuma.
O Estudo de Sífilis de Tuskegee foi um dos mais
casos paradigmáticos de abusos em pesquisas nos Estados Unidos no pós-guerra.
Uma pesquisa realizada de 1932 a 1972 em Tuskegee, Alabama, no país onde nasceu
a Bioética. De 600 homens afro-americanos pobres - e principalmente analfabetos
-, 400 foram infectados com a bactéria da sífilis, para serem acompanhados por
40 anos. Exames médicos gratuitos foram realizados; no entanto, os indivíduos
não foram informados sobre seu diagnóstico. Embora a cura (penicilina) tenha se
tornado disponível na década de 1950, o estudo continuou até 1972, sendo negado
a estes participantes o tratamento adequado. Em alguns casos, quando outros
indivíduos receberam diagnóstico de com sífilis por outros médicos, os
pesquisadores intervieram para impedir o tratamento. Muitos dos participantes
da pesquisa sofreram mortes lentas e com muito sofrimento durante o estudo, que
foi interrompido somente em 1973 pelo Departamento de Saúde, Educação e
Bem-Estar dos EUA, depois que sua existência foi divulgada mediante o artigo
publicado no New York Times.
De modo óbvio, os pesquisadores do Tuskegee
Syphilis Study violaram os quatro princípios da Bioética, pois os pesquisadores
mentiram sobre a condição dos participantes, mentiram sobre o tratamento,
violando a sua autonomia e dignidade. Assim, o respeito às pessoas exige que os
pesquisadores médicos obtenham um consentimento informado dos participantes do
estudo, o que significa que os eles devem receber informações precisas sobre
sua situação e opções de tratamento para que possam decidir o que lhes
acontecerá. No estudo, se violou também o princípio da Beneficência, que significa que
todos os sujeitos do teste devem ser informados de todos os riscos possíveis,
além dos benefícios do (s) tratamento (s) pelo qual concordam em se submeter. Tendo
sido escolhidos com base em raça, gênero e classe econômica, contrariando o
princípio da Justiça que, na verdade é duplo. Justiça individual significa que
um médico ou pesquisador não pode administrar tratamento potencialmente útil a
alguma classe preferida de participantes enquanto oferece tratamentos mais
arriscados ou nenhum tratamento eficaz a qualquer outra pessoa. Por outro lado,
a justiça social sustenta que os participantes da pesquisa devem ser
selecionados de maneira justa e aleatória, sem considerar nenhuma classe
econômica, social e de gênero. O estudo também violou o princípio da Não-Maleficência,
que se desenvolveu a partir do princípio da beneficência, nenhum mal deve ser
causado intencionalmente. Ou seja, antes de tudo vem a obrigação de não fazer o
mal. O profissional da saúde/pesquisador deve ter como princípio que todo o seu
conhecimento apenas deverá ser aplicado para beneficiar ao cliente e/ou à coletividade
e os fins devem ser lícitos. Nenhum procedimento sob nenhum argumento deve
causar danos, mesmo que tenha um fim útil. Os fins não justificam os meios, e
no estudo Tuskegee, morte e sofrimento humano foram infringidos
intencionalmente a cidadãos americanos, que foram usados como meio e não como
fim em si mesmos.
4- Formule um
exemplo na prática médica ou na pesquisa clínica em que a obrigação prima
facie deve ser aplicada.
A questão é que os princípios da Bioética por
si só muitas vezes não são suficientes para determinar o que devemos fazer.
Temos que ver quais deveres prima facie têm prioridade na situação que
enfrentamos.
Há vários exemplos em que surge a necessidade
de aplicar a vinculação prima facie, entre os quais, citam-se os seguintes:
- Uma mulher da comunidade religiosa Testemunhas
de Jeová foi levada à setor de emergências de um hospital, após um acidente de carro. O
diagnóstico foi de “politraumatismo e lesão da artéria subclávia”. Ela
estava consciente e orientada, e declarou sua recusa em receber transfusões de
sangue, solicitando sua transferência para um hospital equipado para oferecer
tratamentos alternativos. Seu registro clínico foi anotado com as
palavras: “Testemunha de Jeová - Recusa Transfusões”. Mais tarde, com a
deterioração de sua condição clínica, a paciente foi submetida a uma cirurgia,
no decurso da qual foi verificada uma ampla laceração da artéria e da veia
subclávias. Enquanto a cirurgia estava em andamento, os médicos tiveram
que realizar uma transfusão de sangue, caso contrário, a paciente apresentaria
choque hemorrágico e morreria. Beneficência, neste caso, entra em conflito com
a autonomia.
- Um médico encontra duas pessoas envolvidas em
um grave acidente em uma via pública, e os acidentados precisam de primeiros
socorros imediatos ou seus ferimentos serão fatais. Infelizmente, após chamar o
SAMU, ele não tem outra ajuda por alguns minutos e, enquanto ele estiver assistindo
uma vítima, a outra provavelmente morrerá. O princípio da beneficência, neste
caso, se aplica a dois objetos de preocupação moral e exige que o médico ajude
as duas vítimas de acidentes, embora ele provavelmente possa salvar apenas uma.
Beneficência, neste caso, entra em conflito com a
justiça.
- Uma mulher está grávida e não deseja levar
adiante esta gestação. O aborto é uma das questões mais controversas no mundo
de hoje. A criminalização do aborto, viola a autonomia da mulher, ou seja, o
direito que ela possui de realizar suas livres escolhas, principalmente em
relação ao seu próprio corpo, que constitui a autonomia e ao direito de fazer
suas próprias escolhas dentro do espectro de possibilidades morais. O respeito
pelas escolhas humanas autônomas tem forte posição na moral secular, pois o
cumprimento desse direito, que é criminalizado no Brasil, pode estar em
conflito com a moral. A não-maleficência é o princípio que impõe uma obrigação
de, acima de tudo, não prejudicar outros seres humanos, sendo particularmente
invocado neste contexto, pois se o princípio da autonomia fosse aplicado a uma
gravidez indesejada na qual não houvesse circunstâncias atenuantes (risco de
vida para a mãe, por exemplo), o término da gravidez levaria à violação dos
direitos do feto à vida para aqueles que acreditam que os fetos já são seres
humanos plenos.
- Um estudante de medicina em um programa de
extensão comunitário da UFPB que atende a pessoas sem-teto na cidade de João
Pessoa, tem como tarefa entrar em contato e oferecer abrigo para as pessoas que
vivem nas ruas e não têm residência permanente. Um dia, ele encontra um jovem
de 20 anos segurando uma garrafa grande de aguardente, e começou a conversar
com ele. O estudante tinha sido treinado em habilidades de engajamento
apropriadas para esse tipo de situação, e explicou ao homem que ele era
afiliado a um programa que poderia providenciar abrigo e comida. O homem respondeu
que não precisava de ninguém, que odiava esses abrigos e que queria ser deixado
em paz. Mas começava a chover muito forte, e o estudante ficou preocupado com o
fato de o homem ficar pelas ruas naquela noite de muita chuva e sucumbir a uma
situação de risco e ficar gravemente ferido ou morrer. O estudante sentiu-se
preso entre seu dever prima facie de respeitar o direito do homem à
autodeterminação e autonomia, e seu dever prima facie de ajudá-lo em situação
de vulnerabilidade.
5- O ato médico do
exame clínico do doente demanda a aplicação do Consentimento Informado? Comente
sua resposta.
Sim, é necessário consentimento para todo o
exame clínico. Mas o consentimento será apenas verbal neste caso. O próprio ato
de um paciente entrar em um consultório médico e expressar o seu problema de saúde
é tomado como um consentimento implícito para o exame físico geral e as
investigações de rotina. O exame íntimo, especialmente em pacientes do sexo
feminino, exige o consentimento expresso, mesmo que de forma oral. O
consentimento expresso por escrito é preferível em situações que envolvam
intervenções de risco e realização de testes invasivos. O formulário de
consentimento não deve ser confundido com o processo de consentimento; o
formulário apenas documenta que o processo ocorreu.
Imagens:
*Topo da postagem: Fonte - https://craigklugman.com – usada com permissão do autor, Dr. Craig Klugman, por e-mail - [imagem adaptada – tradução livre para o português]. Agradeço ao Dr. Klugman pela cortesia.
**Recorte de notícia do The New York Times em 26.07.1972
**Recorte de notícia do The New York Times em 26.07.1972