3 de março de 2020

História da Loucura, Modernidade e Pós-Modernidade


Esta figura representa o resultado de um brainstorming como estratégia de ensino para gerar ideias sobre o tópico "História da Loucura", no módulo de História da Medicina e da Bioética, no terceiro período da graduação em medicina da Universidade Federal da Paraíba. Foi uma estratégia que ajudou a promover habilidades de pensamento, em que os alunos foram solicitados a pensar em aspectos descritivos ou explicativos referentes à história da loucura desde a antiguidade até a pós-modernidade. 
Esse exercício que tentei na atividade didática de ontem foi apenas uma maneira de debater, estimulando os alunos a pensar mais ampla e espontaneamente. Não foi uma sessão de ensino planejada, mas foi importante saber o que os eles  estavam entendendo sobre a temática proposta. Portanto, o brainstorming foi uma boa maneira de ajudar os alunos a pensar sobre o tópico proposto e compartilhar suas ideias a partir de uma pergunta norteadora, incluindo períodos históricos amplos. 
A reflexão sobre o passado de muitas disciplinas médicas foi prática de médicos em exercício em uma época distante com objetivos talvez diferentes dos atuais, das histórias especializadas, como a da psiquiatria. A psiquiatria, como disciplina  da medicina, é um projeto essencialmente modernista. No entanto, nas ciências humanas e sociais, há um crescente consenso pós-moderno de que o modernismo foi um projeto falho. A psiquiatria nasceu em um momento falho? Pode-se dizer que a psiquiatria, a mais próxima das especialidades médicas em relação às ciências humanas e sociais, foi uma das primeiras áreas a se defrontar com a teoria pós-moderna. 
O processo de construção da loucura como doença mental é um tópico instigante; sondar suas implicações no que se refere à formulação e à implantação de novos mecanismos de controle social na sociedade, mediante a criação de instituições asilares e a ampliação das possibilidades de reclusão de um progressivo número de pessoas que receberam o diagnóstico de doentes mentais é explorar os significados, significantes e referentes da crescente abrangência das fronteiras da chamada ‘anormalidade’. Quanto a isso, alguns estudos especificamente dedicados ao tema da loucura deram o norte teórico e metodológico da pesquisa, entre os quais destaca-se, em primeiro lugar, a obra clássica de Michel Foucault, bem como os trabalhos desenvolvidos por alguns estudiosos do tema nas trilhas das reflexões do próprio Foucault. Um dos estudos centrais da interação entre insanidade e as visões culturais ocidentais a obra “História da Loucura na Idade Clássica”, publicada pela primeira vez em 1961. Foucault discute a história da loucura através do Iluminismo, um momento em que ele mostra que o louco é transformado na sociedade moderna no doente mental. Assim, a mudança na concepção de loucura n civilização ocidental é uma tema central na história da Psiquiatria.
O conhecimento em geral, e a prática psiquiátrica em particular, não podem ser entendidos isoladamente de outras instituições de coerção e disciplina. É uma divisão em preto e branco de médicos "ruins" e de pacientes "bons" ou o exercício médico do poder como necessariamente "ruim" e a resistência a ele como necessariamente "boa". Reduz-se o passado da história social da psiquiatria em “oprimidos” e “opressores” que emanavam de sua própria prática e posição institucional. 
Historicamente, o louco nem sempre fora tratado como pessoa “perigosa”, cujo comportamento fosse sentido como ameaça, física ou moral, e cujo tratamento recebido devesse ser semelhante ao que a sociedade ocidental faz com a delinquência. O próprio Foucault, em outra de suas obras, “O Nascimento da Clínica”, revela como o tratamento dado ao doente mental foi se modificando ao longo do tempo, passando de uma licenciosidade e mesmo acolhimento na maioria dos casos, para uma total intolerância, mesmo em casos que não oferecem perigo algum para o corpo social. Segundo Foucault, o confinamento e as práticas mais invasivas e violentas contra o paciente considerado louco constituem um saber especializado a partir do século XVII e vão se desenvolvendo até atingir o ápice no final do século XVIII, formando então um conjunto de práticas médicas “aceitáveis” ainda que infligindo dor, sofrimento e temor ao paciente.
A visão da medicina e da sociedade sobre pacientes mentais evoluiu muito nos últimos anos. Mas uma pergunta continua sem resposta: qual é a linha que separa a lucidez da loucura, o normal do patológico? José Manuel de Sacadura Rocha destaca, em seu artigo “doença mental e controle social: uma releitura a partir de Michel Foucault”, que os conhecimentos, a partir de meados do século XVII, adquirem o status de “científicos”. Com a palavra “desrazão”, Foucault destaca que na Antiguidade, a loucura está presente no horizonte social como um fato estético ou cotidiano, mas depois, na Idade Média, o louco passou a ser excluído, expulso das cidades, enquanto no século XVII – a partir do fenômeno da “grande internação” – a loucura atravessou um período de silêncio, de exclusão. Nessa linha do tempo, a loucura mostra-se como um objeto social e historicamente constituído. Ao longo de sua obra, Foucault deixa claro que a loucura não é um objeto natural, existente desde a aurora dos tempos e esperando para ser entendido pelo homem, mas uma criação do próprio homem. Isso se deu, segundo ele, a partir de tecnologias dos saberes sobre esse corpo específico, a partir de múltiplas transformações no modo de se ver a figura do louco.
Na “História da Loucura”, de Foucault, portanto, coloca-se a questão de como a loucura e as próprias visões e representações sociais do fenômeno mudaram, não apenas com o advento da psiquiatria e da psicanálise, mas também com o crescente conhecimento em todo o século XX. O materialismo, o existencialismo e a globalização, e não apenas a Razão da Modernidade, influenciaram a maneira pela se lidou com o irracional. Foucault, no entanto, escolheu Descartes para integrar a estrutura da exclusão que o louco sofreu na Idade Moderna. Descartes inaugurou a filosofia moderna, embora o pensamento cartesiano não tenha dado à loucura o estatuto atribuído por Foucault na modernidade, ou mesmo tenha tido uma relação direta com a fundação do Hospital Geral, com o movimento da “Grande Internação” ou mesmo com a libertação dos loucos acorrentados no século seguinte.  
Essa interpretação está nas mudanças que ocorreram entre a modernidade e a pós-modernidade. "Pós-moderno" é o termo usado pela maioria dos cientistas sociais. A denominação “moderna” ou “pós-moderna” traduz-se em uma nova postura (de pensamento, de sensibilidade, de valores sociais) que adquire o status de nova era, nova temporalidade. A modernidade, como um mundo de ideias, representações, modelos e valores, é inseparável do espírito do Iluminismo. Desde o início do século XX até hoje, muitos sociólogos se concentraram em esclarecer o conteúdo desse conceito, bem como os conceitos relacionados de pós-modernidade e hipermodernidade. O termo “pós-modernidade” refere-se literalmente ao período após a modernidade, no qual a sociedade saiu de sua era pós-industrial para o próximo estágio de desenvolvimento, trazendo novas condições e fenômenos sociais. A versão sociológica da teoria pós-moderna que se desenvolveu geralmente sustentava que os centros de autoridade tradicionais da sociedade pós-industrial estavam se desintegrando e dando lugar ao surgimento de uma nova modernidade social - a pós-moderna. Assim, enquanto o pensamento moderno enfatiza ordem, coerência, estabilidade, controle, autonomia e universalidade, o pensamento pós moderno enfatiza fragmentação, diversidade, descontinuidade, contingência, pragmatismo, multiplicidade e interconexões. A pós-modernidade proporcionou um ambiente cultural e social no qual se passou a discutir a loucura por meio de uma variedade de discursos, e isso se reflete na figura do quadro branco da sala de aula em que estão as palavras escolhidas pelos alunos para se referir à história da loucura.