12 de abril de 2020

A Distorção Ideológica dos Conceitos de Razão, Liberdade e Autonomia

Texto de Marcelo Ferreira Caixeta, médico psiquiatra, especialista em psiquiatria da infância e adolescência pela Universidade de Paris, pós-graduado em psiquiatria infantil pela USP, psiquiatra forense pela Associação Médica Brasileira/Associação Brasileira de Psiquiatria

Reproduzido e publicado neste blog com permissão do autor, a partir de sua página do Facebook; o título da presente postagem foi adicionado por esta weblog-editora (link da versão original a seguir) -

Como o "Cristianismo", Kant, Rousseau, os Iluministas e a Revolução Francesa nos jogaram nos braços do Esquerdismo-Totalitarismo- Estatismo?

(1) As regras morais têm base no que é útil, no que é bom ou no que é justo? Razão e emoção jogam que papel na determinação da moral?
O filósofo alemão do século XVIII, Immanuel Kant, estudou exaustivamente esse problema (conforme seus livros “Crítica da Razão Pura” - Ed. 70; “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” - Ed. Claret; “Metafísica dos Costumes” - Ed. PubliFolha).
Como já vimos nos nossos livros "Psiquiatria das Condutas Imorais" - Ed. Sparta; Psiquiatria Forense da Consciência Moral - Ed. Sparta), Kant conclui que a Moral tem de ser uma Lei Racional, isto é, não dependente das coisas práticas/empíricas da vida, ou seja, não dependente do que é útil, nem do que é belo, nem do que é agradável, isto é, não pode depender do que é experimentado, do que é vivenciado, mas sim do que é raciocinado, sim, daquilo que nossa vontade racional nos manda fazer (Imperativo Categórico: que seus atos possam ser uma Lei Universal).
Podemos nos perguntar: por que Kant tem tanta necessidade de que a Moral não seja algo derivado do que é sensível-emocional-vivenciado-experienciado-útil-agradável? Há vários níveis de resposta para a pergunta acima, que tentaremos deslindar a seguir.
(2) Em primeiro lugar, Kant pensa que todos nós temos uma consciência moral inata dentro de nós, uma Lei Moral que não sabemos de onde vem. É uma Lei que está sempre a julgar nossos atos, impedindo-nos de prejudicar alguém (Ver o caráter inato dessa instância moral em nossos livros "Psiquiatria das Condutas Imorais" [Ed. Sparta] e Psiquiatria Forense da Consciência Moral [Ed. Sparta]). De fato, lá pudemos ver e investigar que há, sim, uma tendência inata dos indivíduos para se comportarem de acordo com um maior ou menor grau de moralidade, mostramos que essas tendências, apesar de racionalizadas no atualmente têm, no seu passado, uma base emocional-prazerosa em suas origens.
Essa base emocional da Moral perde-se na linha do tempo, e o indivíduo não tem mais noção dela, olhando para dentro de si e achando que sua moral tem uma origem puramente racional-inata.
(3) Mas Kant não tem só essa base empírica (“olhar para dentro e ver uma moral inata dentro de si”) para considerar a moral como algo primário, algo não baseado nas emoções e na experiência. Ele tem outros motivos, mas não os julga ou não os propala conscientemente. Vamos estudar a seguir dois outros desses motivos: (3.a) um motivo ansioso-obsessivo e (3.b) um motivo estético-intelectivo.
Kant tem uma necessidade premente, pervasiva, de retirar a Moral do campo empírico-utilitário-emocional e colocá-lo no campo do racional, do absoluto, do volitivo, do necessário, do não-contingente, do não-temporal. Kant não tem uma consciência muito explícita dessa necessidade.
(3.a) Kant nitidamente é um indivíduo com uma estrutura obsessiva do pensamento. Nesta estrutura obsessiva, o controle racional é muito importante: o controle e a ansiedade "pensando lá na frente", controlando racionalmente as variáveis que podem "causar problemas no futuro". A obsessividade não é algo primariamente patológico. A natureza dotou nosso cérebro com mecanismos naturalmente obsessivos para que possamos acompanhar e prever o que vai acontecer no Universo. Quando podemos prever, podemos prevenir, é assim que "pensa a Natureza". Muitos de nossos comportamentos racionais-morais têm como base a prevenção de "coisas ruins", que podem ocorrer no futuro ("não vou largar minha esposa por outra mais nova porque não quero vê-la sofrer, não quero sentir falta dela, não quero ficar sem ver e conviver com meus filhos", etc).
Temos em nosso cérebro um mecanismo ansioso-obsessivo que nos capacita e nos induz a "acompanharmos o Universo" para onde o Universo caminha e evolui. Esse aparelho mental ansioso-obsessivo não deixa de ser racional, pois não vive aquelas situações de modo prático-empírico, vive-as apenas virtualmente-racionalmente. Esse aparelho apenas racionaliza-previne o que vai acontecer; nesse sentido, é algo "teórico". Kant é muito obsessivo, é muito teórico, e tem muito gosto nisso, muito gosto na simetria, rigor e regularidade do que acontece e vai acontecer no Universo. Ele é contra empirismos relativistas, daí seu gosto pela normatização absoluta, um modo de se aferrar ao conceito de Verdade, de ir contra a "relatividade moral".
(3.b) Há um gosto estético e um prazer em racionalizar-obsessionar as coisas. Dá uma sensação de domínio, controle; dá uma sensação de que estamos "trabalhando" sobre o futuro, uma sensação de que estamos construindo algo racionalmente dentro do Universo, uma sensação de potência, de plenitude, de segurança, e até de aconchego no meio do "seio de Deus", a sensação de estar "fazendo a coisa certa", "trilhando o rumo seguro e certo".
Quando controlamos com a razão, a segurança que sentimos é bem maior do que quando somos impelidos pela emoção; isso é um dos motivos pelos quais Kant quer tirar a moral da emoção e passá-la para os braços da razão. Planejar racionalmente aumenta muito mais a força do espírito do que nos deixarmos guiar por reações emocionais; dá a sensação de que o espírito está no controle. Dá a sensação de que estamos trabalhando ativamente na construção de nossa existência, e não apenas "sofrendo essa existência" de modo passivo e emocional. Kant não é um artista-emocional, é um racionalista-filósofo, e tem muito gosto nessa racionalidade ("instinto laboral").
(4) Na construção de seu sistema filosófico, Kant precisa de causas racionais, não de causas empíricas-emocionais. Seu sistema, desde a "Crítica da Razão Pura", é como um edifício sólido, no qual não pode haver "furos não-racionais". Com a "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", com a "Crítica da Razão Prática", Kant liga a racionalidade à vontade/volição. Desta forma ele ganha para si dois dos três "gigantes da alma" (razão, volição, emoção). Ele mostra que a Moral é uma vontade dirigida pela razão. Esta razão é baseada em "Leis Morais", não em vivências emocionais-experienciais-empíricas. Para Kant, as Leis Morais são prescritas pela nossa própria razão, com base em tendências morais inatas que trazemos em nós. Kant não explica como e de onde surgem essas tendências/Leis Morais dentro de nossa alma. Apenas relata , muito timidamente/brevemente, que são inatas , conforme se vê na “Metafísica dos Costumes” (Ed. Publifolha) e na "Crítica da Razão Prática" (Ed. 70). O problema é que , quando o homem não cria suas leis, apenas obedece leis morais já existentes dentro de si, ele passa a ter uma posição passiva de novo, algo que Kant não quer. E, com as ideias inatas, voltamos a ser vítimas do inexplicável e do irracional.
(5) Não há como fugir da emocionalidade na prática da Lei Moral (sobre detalhes mais profundos sobre isso, ver nosso livro "Psiquiatria Forense da Consciência Moral", Ed. Sparta). Até para querer o bem dos outros precisamos da emoção: temos dentro de nós um instinto gregário/altruísta/especular que nos faz ficar alegres quando fazemos os outros alegres. Refletir "especularmente" a alegria dos outros nos torna mais felizes. Portanto, agir para o bem dos outros não é algo assim tão racional como Kant quer fazer crer. Para Kant, temos de querer o bem dos outros porque tudo que queremos para nós, nós temos de querer para os outros. A causa disso é a Lei da Liberdade/Autonomia do espírito: só num mundo onde todos têm direitos iguais pode haver Liberdade, e só onde há liberdade o espírito pode ter autonomia; e só onde o espírito tem autonomia ele pode realizar-se na plenitude de suas evoluções. E só realizando-se a si mesmo é que o espírito pode fugir do determinismo físico-biológico-material. Para Kant, só a fuga do determinismo físico-biológico-material consegue explicar nosso gosto pela liberdade, nossa capacidade moral de agirmos contra nossos próprios instintos, nossa capacidade de agirmos contra nossa própria biologia.
Kant comete aqui vários erros, que veremos a seguir:
(5.a) O "erro" de considerar "todos iguais" - quando, na verdade, não somos todos iguais - isso deu origem a sistemas políticos esquerdistas degenerados em totalitarismos de igualdade, e tais sistemas tentam anular as liberdades individuais, levando ao oposto daquilo que Kant queria, ou seja, a plena autonomia/liberdade do indivíduo.
(5.b) Somos, de fato, determinados pela biologia, como se mostra com a origem emocional-prazerosa da Moral (ver sobre isso nosso livro "Psiquiatria Forense da Consciência Moral", Ed. Sparta).
(5.c) Nossa liberdade é relativa. Só temos a liberdade de fazer aquilo que segue as Leis do Universo. Quando nossa liberdade individual nos leva a não fazermos o que está pré-determinado na Leis Evolutivas do Universo, nós estagnamos e sofremos.
(5.d) As Leis do Universo apontam no sentido da evolução e da complexificação. Se não sairmos de nós mesmos (egoísmo), em direção ao outro (altruísmo ), nós não nos complexificamos. Portanto, mais cedo ou mais tarde, somos "obrigados" a amar, algo que está no âmbito da moralidade (querer aos outros o que queremos a nós mesmos). E se somos "obrigados a amar", isto está fora da Liberdade, está fora da Autonomia, está no âmbito do determinismo.
(5.e) A "liberdade" pode ser interpretada em dois sentidos: a liberdade do "ego" (instância psíquica mais evoluída) e a liberdade do "id" (instância psíquica mais primitiva ), conforme Freud.
São duas liberdades diferentes: o ego quer o fortalecimento do espírito, rege-se pelo princípio do gosto pela eficiência, gosto pela realização. Já o "id" quer o prazer, rege-se pelo "princípio do prazer". Um (o ego) quer a liberdade de criar, realizar, construir; o outro (o id) quer a liberdade do prazer. Ambos são opostos, a liberdade do prazer cria a prisão da alma. São duas liberdades que não podem ser confundidas. A "liberdade do ego", na verdade, é uma prisão para o id: não deixa que este realize seus prazeres que prejudicam os outros ou a si mesmo (o seu próprio corpo ou sua própria vida). A "liberdade de criar", "liberdade de perseverar no próprio eu" (ver Espinosa), liberdade de moldar o próprio rumo, liberdade da autonomia, também tem suas bases biológicas, não é algo "suprassensível", como Kant gostava de dizer. A liberdade é, portanto, biologicamente determinada, ao contrário do que dizia Kant.
(6) Quando os iluministas, Kant e Rousseau, assim como quando a Revolução Francesa colocaram a liberdade autônoma como base do sentimento de dignidade humana, não sabiam que estavam induzindo, com a "igualdade", sistemas políticos de Esquerda (esquerdismo) que iriam redundar exatamente no contrário disso: perdas das liberdades individuais. "Forçar a igualdade" produziu os horrores do comunismo; tratar como iguais a todos, sendo células de um corpo estatal, levou aos terrores do totalitarismo. Kant criou normas/leis extra biológicas-suprassensíveis, Liberdade e Autonomia que, sendo interpretadas e usadas de forma equivocada, levaram a desastres políticos. A "igualdade" leva à uma diluição da Lei Moral, pois a igualdade é colegiada, não segue um princípio único. Decisões colegiadas passam a julgar a moralidade. Pessoas que têm gosto pelo colegiado, não pelo trabalho (políticos), dominam o sistema político, distorcem as normas morais, cria-se uma "moral relativística do que é votado".
Normas extra biológicas criaram a falsa ilusão de que "medidas racionais" podem bem dirigir os homens. E isso é bem aproveitado por homens que querem dirigir outros homens (mais do que trabalhar e construir). Eles se aproveitam dessa justificativa kantiana para justificarem moralmente a obediência a normas suprassensíveis, extra biológicas: obedecer a um Estado que simboliza, consubstancia, tudo isso. Passa-se à falsa ideia de liberdade/autonomia levada a cabo pela equalização que o Estado faz dos cidadãos.
Ideias que têm pretensa base ou força moral são muito poderosas. A distorção kantiana nos faz esquecer o básico: somos biologicamente todos muito diferentes.
(7) A errada - mas moralmente chamativa - noção iluminista/kantiana de liberdade/autonomia juntou-se ao "igualitarismo cristão" (“nossos irmãos e iguais perante Deus") para fortalecer o estatismo/esquerdismo. É claro, como sempre, que isso acaba por fortalecer os indivíduos ávidos de poder (políticos), que  se aproveitaram disso mais uma vez.
É claro que tudo isso tinha também outras justificativas menos filosóficas: a "burguesia" precisava trabalhar (liberdade) sem as amarras dos poderosos, nobres, déspotas, reis, indivíduos autoritários e fortes. A busca filosófica da liberdade/autonomia veio a calhar nesse momento.
(8) Mesmo com regimes totalitários, ou sob capitalismo selvagem, é possível ao indivíduo exercer sua "liberdade de evoluir": é porque essa liberdade não depende da economia ou leis, coisas externas, que não atingem o âmago da alma do indivíduo. É nesse âmago que se trava a verdadeira batalha pela liberdade, que é a batalha pela libertação do ego em relação ao id. O eu evoluído, ou o "eu secundário", o eu moral, libertando-se do eu primitivo-instintivo-prazeroso. Isso é uma batalha interna, não externa. Leis, Estado, Economia, não atingem diretamente essas instâncias internas. É claro um Estado libertário, não-despótico, ajuda nesse processo, não querendo moldar a moral individual, não querendo interferir na liberdade do indivíduo, liberdade tanto para pecar (involuir, estagnar) quanto para se santificar (evoluir).
O problema é que todo Estado interfere nisso, até aqueles pretensamente libertários: um Estado que tem sucesso em ser libertário é raríssimo, porque todas as realizações do Estado, até em tentar diminuir-se, só fazem aumentá-lo. É um paradoxo: o Estado que fala em se diminuir, se tiver sucesso, está é aumentando o seu poder; e se tiver fracasso, também estará é aumentando o poder do Estado. Um governante que tem sucesso em diminuir o Estado quer continuar tendo sucesso à frente desse Estado, e aí, com essas manobras políticas, só faz aumentar o poder do Estado, gerando o paradoxo.
A única solução é a da Sociedade Civil lutar todo o tempo para diminuir o Estado, diminuir a ação do Estado quando este interfere pejorativamente na capacidade de o indivíduo ser autônomo em suas decisões e iniciativas.
(9) A única função que sobraria para o Estado, dentro dessa concepção acima, seria aquela da "prender os indivíduos que perturbam a liberdade/autonomia dos outros indivíduos evoluírem". Mesmo assim, mesmo nessa área, a própria Sociedade Civil disso também poderia se encarregar, com milícias próprias e presídios/hospitais psiquiátricos de custódia geridos/mantidos pela própria iniciativa privada.
Economia, saúde, educação, segurança etc., tudo poderia ser muito bem gerido pela sociedade civil, sem o atravessamento do Estado.
Mas isso só se dará com um gradativo e contínuo processo, não com um golpe de misericórdia. A luta contra a diminuição do Estado tem de ser geral e contínua, em todos os setores da vida civil. Só assim o indivíduo poderá ser verdadeiramente livre para evoluir ou involuir (estagnar) como assim o desejar. Fora disso o Estado estará sempre no intuito de interferir e ferir as liberdades individuais. Mesmo os Estados que se dizem "libertários", como mostramos anteriormente, não fugirão dessa armadilha para a liberdade real do indivíduo.
(10) É algo mais ou menos do tipo: os "muito competentes" cuidam de si, apesar do Estado; os "competentes" são” incompetentizados” pelo Estado; e os verdadeiramente "incompetentes" seriam ajudados pelos outros dois tipos se não fosse o Estado.

Imagem: Pinterest

11 de abril de 2020

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Esclarecimentos sobre estratégias de ventilação mecânica para doentes com Covid-19 pela médica pneumologista e intensivista Eliáuria Martins, professora de Semiologia Médica da Universidade Federal da Paraíba

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10 de abril de 2020

História em Saúde Pública e Grandes Epidemias - Parte 2



História em Saúde Pública e Grandes Epidemias - Parte 2

Esta é a segunda parte da apresentação sob a forma de videoaulas intituladas "História em Saúde Pública e Grandes Epidemias".
No primeiro vídeo, ou Parte 1, foi abordada a importância da História da Saúde Pública e seus aspectos conceituais de uma perspectiva histórica. A ideia era também incluir noções sobre a origem e evolução de medidas de SP ao longo do tempo, mas vou adicionar este tópico ao presente vídeo, no qual serão abordados também fatores moldaram os modernos sistemas de saúde pública. Então, no terceiro vídeo, serão enfocadas as grandes epidemias da história.
A evolução da saúde pública é um processo contínuo; os patógenos mudam, assim como o ambiente e o hospedeiro. Para enfrentar os desafios futuros, é importante entender o passado. Embora haja muita coisa nova nesta era, muitos dos debates e argumentos atuais em saúde pública são ecos do passado.