Rilva Lopes de
Sousa Muñoz
“É
difícil falar a verdade, pois, embora exista apenas uma verdade, ela está viva
e, portanto, tem um rosto vivo e mutável "
(Franz
Kafka)
Hoje,
com opiniões altamente polarizadas (o que não é, de todo, mau, desde que haja
dialética), as fake news afetam significativamente a confiança das pessoas em
relação às notícias on-line. Pessoas inteligentes com alfabetização midiática e
alfabetização crítica da mídia tem sido confundidos
por campanhas de desinformação. Em meio a uma explosão de informações enganosas
ou mal interpretadas, as pessoas têm dificuldades em saber em quem acreditar. Por
outro lado, as pessoas tendem a buscar notícias que reforcem suas visões preexistentes,
mesmo que sejam baseadas em informações não confiáveis. Estas idéias já estão
sendo discutidas há muito tempo, mas na atual era da Internet e da grande variedade
de mídias sociais, a criação e o consumo de notícias e informações realçam e acentuam
o fenômeno. Assim, embora as notícias
falsas já existam há muito tempo, sua proliferação recente se desenvolveu de
forma inédita devido ao uso crescente da tecnologia.
“Notícias falsas” – ou a
referência a artigos ou histórias publicadas com informações falsas que afirmam
ser notícias reais – também não é um conceito novo. Como sempre ocorreu na
sociedade, o potencial das fake news de causar danos irreversíveis às pessoas e
organizações está fazendo com que as organizações governamentais precisem tomar
providências consistentes para garantir que as informações que disseminam sejam
credíveis. "Fake news” ou “notícias falsas", na sua
tradução literal, pode significar coisas diferentes, dependendo do
contexto. A sátira de notícias e as paródias não são fake news. Por outro lado, muitas teorias de conspiração
podem gerar grande desinformação, que é difícil de corrigir e pode ter efeitos
duradouros mesmo depois de ter sido desmascarada, se não forem substituídas por
uma explicação causal alternativa.
Vários esforços para abrandar
a influência da desinformação já estão em andamento, fornecendo informações
sobre as estratégias para gerenciar essa ameaça do século XXI. Com base em
pesquisas da academia e do mundo das políticas, governos e plataformas de mídia
social implementaram novas medidas para tentar conter a disseminação de
notícias falsas no Brasil e no exterior. Ontem, dia 30/06/2020, o Senado
Federal brasileiro aprovou o Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, que propõe medidas
de combate à propagação de notícias falsas. Muitos consideram que este PL imporá
a censura. Mas será que esta não será uma nova fake news?
O chamado projeto das fake
news do Senado contém disposições vagas e gerais que estão sujeitas a abusos,
pois pode restringir e penalizar a fala e a liberdade de opinião legalmente
protegidas, inclusive com pena de prisão, e minaria a privacidade das
comunicações. O Senado Federal
acabou de aprovar um projeto de lei que pode ter pouco alcance, a não ser o de abafar
a liberdade de expressão on-line e exigir que as empresas de internet coletem
dados inúteis sobre todos os usuários.
Esta é a opinião de Maria Laura Canineu, diretora brasileira da Human Rights
Watch.
O referido e malfadado PL ordena
que as empresas de internet acompanhem a cadeia de comunicações de todos os
brasileiros, o que criaria um gigante banco de dados, que pode ser facilmente
mal utilizado para fins políticos, para rastrear fontes de jornalistas ou para
perseguir criminalmente pessoas por compartilharem mensagens que as autoridades
consideram um risco para "paz social ou ordem econômica". Nesse
sentido, o PL não define o que seria risco para paz social ou ordem econômica. Além
disso, Maria Helena Canineu considera também que suspender as contas de mídias sociais quando os
respectivos números de telefone forem cancelados, por exemplo, por falta de
pagamento. Essas disposições dificultariam o uso da Internet pelas pessoas
pobres.
Ainda a propósito da fala da diretora
da Human Rights Watch, “os meios de comunicação alternativos estão
constantemente se desenvolvendo e se tornando mais credíveis, gostemos ou não”.
Para ela, a influência dessas mídias está crescendo e seu efeito sobre a grande
mídia é muito forte. Recorrendo à citada defensora dos Direitos Humanos, os
meios de comunicação alternativos não devem ser analisados
por meio do questionamento de se as informações
fornecidas são verdadeiras ou falsas. Além disso, muitas questões polêmicas,
como as de natureza política são, em grande medida, sujeitas à interpretação e
não podem ser incondicionalmente rotuladas como verdadeiras ou falsas.
Grönning (2019) lembra que Gwenaëlle Bauvois, pesquisadora
na Universidade de Helsinque, relaciona o conceito de notícias falsas a partir
do conceito de "pós-verdade", argumentando que termos como
"contra-conhecimento" e "reinformação" são mais apropriados
e definem a reinformação como um processo oportunista no qual os atores buscam
influenciar o debate público.
O conceito de “mídia
alternativa”, por sua vez, é problemático, pois tende a ter conotações
positivas, por exemplo, ao fornecer uma alternativa bem-vinda às visões
principais. Portanto, os pesquisadores preferem o termo "contramídia", pois esses meios de
comunicação tendem a se opor explicitamente à mídia convencional. Ao focar nos fatos e na fixação com
verdadeiro e falso, a crítica apresentada em relação à contramídia
frequentemente erra o alvo. É importante entender que os meios de comunicação
alternativos operam primariamente dentro do campo da identificação, e não da
informação, incentivando o público a se identificar como o coletivo
desprivilegiado e uma força contrária à “elite”. As emoções são uma
característica significativa dessa retórica.
Para a grande mídia, os
meios de comunicação partidários on-line e seu conteúdo falacioso provaram ser
um desafio problemático. Os pesquisadores conseguiram concluir que os esforços
da mídia tradicional e das denominadas agências verificadoras de fatos (fact
checking) para desmerecer notícias falsas ou histórias de conspiração não são
apenas ineficazes - mas podem ser realmente contraproducentes (GRÖNING, 2019).
As histórias fabricadas que
se apresentam como jornalismo sério provavelmente não desaparecerão, como ocorre
nas grandes empresas de mídia, como a Rede Globo, a Rede Bandeirantes, os jornais
Folha de São Paulo e Estadão, as revistas Veja e a IstoÉ, que se tornaram um
meio para alguns pretensos jornalistas ganharem dinheiro e potencialmente
influenciarem a opinião pública.
Sobre a relação já mencionada neste texto
entre fake news e pós-verdade, Keane (2018) questiona se estamos vivendo em um
mundo pós-verdade. Ele mesmo responde que se a resposta a este
questionamento for "sim", então ela será "não" porque acaba-se
por avaliar a declaração de maneira probatória, portanto as evidências ainda
são importantes e os fatos ainda são importantes. As universidades, para
viver de acordo com a sua missão de promover o conhecimento, a verdade e a
razão , são obrigadas a ser confrontadas com a objeção de que essas aspirações sejam
concretizadas como uma busca da razão e da verdade objetiva, que atualmente,
são vistas como anacronismos do Iluminismo.
Assim, responde Keane (2018), “não estamos
vivendo em
uma era pós-verdade”. Ele acrescenta que “vivemos em uma era revolucionária
inacabada de abundância comunicativa”. Computadores em rede e fluxos de
informação estão moldando as atividades de praticamente todas as instituições e
a vida no seu todo.
O
que exatamente se entende pelo termo pós-verdade? Paradoxalmente, a pós-verdade
está entre as palavras-meme mais comentadas e mal definidas do nosso tempo. Pós-verdade
é a tendência crescente de "discussões políticas e sociais" de ser
dominada por "emoções em vez de fatos", ocorrendo quando compreende a
comunicação que desloca e anula preocupações sobre a veracidade. Este é um
fenômeno projetado para atrair e distrair a atenção do público e interromper o
ruído de fundo da política convencional e da vida pública. O objetivo dos que
utilizam a chamada pós-verdade é desorientar e desestabilizar as pessoas e as
instituições, aproveitando as dúvidas das pessoas, afetando sua capacidade de
ver o mundo com ironia, bem como atacando sua capacidade de fazer julgamentos,
a fim de conduzi-los à submissão (KEANE, 2018).
Em
2016, o Dicionário Oxford selecionou "pós-verdade" como a
"Palavra do Ano" e a definiu como "um termo relacionado ou
denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na
formação da opinião pública do que apelos à emoção e crença pessoal”. A
definição proposta deriva da observação filosófica do novo conceito
"pós-verdade", que se baseia nas principais teorias relacionadas ao
antigo e familiar conceito de "verdade" e, com base em uma análise
das características do fenômeno pós-verdade.
A
primeira pessoa a usar o termo "pós-verdade" em seu contexto
contemporâneo foi o dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, ao criticar o
público americano por aceitar de forma submissa as mentiras do governo Bush e por
decidir conscientemente viver em um “mundo pós-verdade”, ou seja, em um mundo
em que a verdade não é mais importante ou relevante. O termo ressurgiu em 2004,
no título de um livro de Ralph Keyes, “The Post-Truth Era”. Mas foi em 2016, no
contexto das eleições presidenciais dos Estados Unidos e do referendo do Reino
Unido sobre a retirada da União Europeia (Brexit), o novo e bastante obscuro
termo se tornou predominante, e seu uso no contexto político disparou, quando o
Dicionário Oxford selecionou esse neologismo como a “Palavra do Ano”.
Quando falamos em “polaridade” no início deste
texto, foi no sentido de que no mundo de hoje, a verdade factual que vai contra os
interesses de um determinado grupo político será recebida com maior hostilidade
do que nunca. Segundo Hannah Arendt, citada por Brahms (2019), o maior
antagonista da verdade factual é uma opinião, e não uma mentira,
particularmente à luz da predileção atual de obscurecer a linha entre fato e
opinião. Quando um mentiroso, deliberada e expressamente, quer ocultar uma
falsidade, ele diz que a mentira é apenas sua opinião e, como qualquer pessoa
em um país liberal democrático, desfruta da liberdade de expressão e do direito
de expressar sua opinião. Ainda recorrendo a Hannah Arendt, Brahms (2019) refere que embora seja
verdade que nossa verdade factual nunca está completamente livre de
interpretação ou perspectiva pessoal, essa situação não pode servir como
argumento contra a existência da realidade e dos fatos, nem justificar o
embaçamento das linhas divisórias entre fato, opinião e interpretação. O
resultado desse embaçamento é um público confuso que não consegue diferenciar
fato, opinião e notícia falsa. Além disso, muitos dos que se envolvem no
fenômeno pós-verdade tendem a vinculá-lo a idéias pós-modernistas e,
particularmente, tendem a alegar que o fenômeno pós-verdade não poderia ter
surgido se não fosse o pós-modernismo, que surgiu durante a segunda metade do século
XX, após o fim da Guerra Fria, contra o pano de fundo da oposição dos filósofos
e estudiosos acadêmicos para grandes ideologias, meta-narrativas e controle do establishment
sobre a ciência, o conhecimento e a verdade.
Quanto
à “era pós-verdade”, Pinking (2019) afirma que os jornalistas deveriam
aposentar esse clichê, a menos que consigam manter um tom de ironia. Isso
resulta da observação de que alguns políticos mentem muito, mas os políticos
sempre mentiram muito. Diz-e que na guerra, a verdade é a primeira vítima, e
isso também pode ser verdade na guerra política. Outra inspiração para o clichê pós-verdade é o
recente destaque dado às fake news.
Este
é um tema atual e denso. Só promovendo o pensamento crítico e a educação em
alfabetização digital se pode encontrar uma possível solução em longo prazo
para esse dilema da informação, no Brasil e no mundo. Cada vez mais, é preciso
aprender a peneirar e examinar as informações que se consomem, tanto publicadas
em veículos de comunicação no Brasil quanto fora do país.
Referências
Agência
Brasil. Senado aprova PL das Fake News; projeto segue para Câmara. 2020.
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-06/senado-aprova-pl-das-fake-news-projeto-segue-para-camara
Brahms Y. Philosophy of Post-Truth 2019. Disponível em: https://www.inss.org.il/publication/philosophy-of-post-truth/#_edn3
Gröning
P. Nordic Welfare News. Forget “fake news” – we need a smarter approach to
countermedia. 2019. Disponível em: https://www.helsinki.fi/en/news/nordic-welfare-news/forget-fake-news-we-need-a-smarter-approach-to-countermedia?gclid=CjwKCAjwxev3BRBBEiwAiB_PWNb9-8tHLZ3Cj134M8rVMcTcOwUzSXA8UbOVw3j8KUfX5poxfL6T5xoC0MYQAvD_BwE
Pinker
S. Why We Are Not Living in a Post‑Truth Era: An (Unnecessary) Defense of Reason and
a (Necessary) Defense of Universities’ Role in Advancing it. Skeptic 2019.
Disponível em: https://www.skeptic.com/reading_room/steven-pinker-on-why-we-are-not-living-in-a-post-truth-era/?gclid=CjwKCAjwxev3BRBBEiwAiB_PWCbAryxrjk8HOLPRW2lU34sk6inlKxEJ6BBmg-djRMiqI55Ae1VV2hoCmCIQAvD_BwE
Keane
J. Post-truth politics and why the antidote isn’t simply ‘fact-checking’ and
truth. 2018. Disponível em: https://theconversation.com/post-truth-politics-and-why-the-antidote-isnt-simply-fact-checking-and-truth-87364
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