1 de julho de 2020

Fake News, Pós-Verdade e Reinformação


Rilva Lopes de Sousa Muñoz
É difícil falar a verdade, pois, embora exista apenas uma verdade, ela está viva e, portanto, tem um rosto vivo e mutável "
(Franz Kafka)

Hoje, com opiniões altamente polarizadas (o que não é, de todo, mau, desde que haja dialética), as fake news afetam significativamente a confiança das pessoas em relação às notícias on-line. Pessoas inteligentes com alfabetização midiática e alfabetização crítica da mídia tem sido confundidos por campanhas de desinformação. Em meio a uma explosão de informações enganosas ou mal interpretadas, as pessoas têm dificuldades em saber em quem acreditar. Por outro lado, as pessoas tendem a buscar notícias que reforcem suas visões preexistentes, mesmo que sejam baseadas em informações não confiáveis. Estas idéias já estão sendo discutidas há muito tempo, mas na atual era da Internet e da grande variedade de mídias sociais, a criação e o consumo de notícias e informações realçam e acentuam o fenômeno. Assim, embora as notícias falsas já existam há muito tempo, sua proliferação recente se desenvolveu de forma inédita devido ao uso crescente da tecnologia.
“Notícias falsas” – ou a referência a artigos ou histórias publicadas com informações falsas que afirmam ser notícias reais – também não é um conceito novo. Como sempre ocorreu na sociedade, o potencial das fake news de causar danos irreversíveis às pessoas e organizações está fazendo com que as organizações governamentais precisem tomar providências consistentes para garantir que as informações que disseminam sejam credíveis. "Fake news” ou “notícias falsas", na sua tradução literal, pode significar coisas diferentes, dependendo do contexto. A sátira de notícias e as paródias não são fake news.  Por outro lado, muitas teorias de conspiração podem gerar grande desinformação, que é difícil de corrigir e pode ter efeitos duradouros mesmo depois de ter sido desmascarada, se não forem substituídas por uma explicação causal alternativa.
Vários esforços para abrandar a influência da desinformação já estão em andamento, fornecendo informações sobre as estratégias para gerenciar essa ameaça do século XXI. Com base em pesquisas da academia e do mundo das políticas, governos e plataformas de mídia social implementaram novas medidas para tentar conter a disseminação de notícias falsas no Brasil e no exterior. Ontem, dia 30/06/2020, o Senado Federal brasileiro aprovou o Projeto de Lei (PL) 2.630/2020, que propõe medidas de combate à propagação de notícias falsas. Muitos consideram que este PL imporá a censura. Mas será que esta não será uma nova fake news?
O chamado projeto das fake news do Senado contém disposições vagas e gerais que estão sujeitas a abusos, pois pode restringir e penalizar a fala e a liberdade de opinião legalmente protegidas, inclusive com pena de prisão, e minaria a privacidade das comunicações. O Senado Federal acabou de aprovar um projeto de lei que pode ter pouco alcance, a não ser o de abafar a liberdade de expressão on-line e exigir que as empresas de internet coletem dados inúteis  sobre todos os usuários. Esta é a opinião de Maria Laura Canineu, diretora brasileira da Human Rights Watch.
O referido e malfadado PL ordena que as empresas de internet acompanhem a cadeia de comunicações de todos os brasileiros, o que criaria um gigante banco de dados, que pode ser facilmente mal utilizado para fins políticos, para rastrear fontes de jornalistas ou para perseguir criminalmente pessoas por compartilharem mensagens que as autoridades consideram um risco para "paz social ou ordem econômica". Nesse sentido, o PL não define o que seria risco para paz social ou ordem econômica. Além disso, Maria Helena Canineu considera também que suspender as contas de mídias sociais quando os respectivos números de telefone forem cancelados, por exemplo, por falta de pagamento. Essas disposições dificultariam o uso da Internet pelas pessoas pobres.
Ainda a propósito da fala da diretora da Human Rights Watch, “os meios de comunicação alternativos estão constantemente se desenvolvendo e se tornando mais credíveis, gostemos ou não”. Para ela, a influência dessas mídias está crescendo e seu efeito sobre a grande mídia é muito forte. Recorrendo à citada defensora dos Direitos Humanos, os meios de comunicação alternativos não devem ser analisados ​​ por meio do questionamento de se as informações fornecidas são verdadeiras ou falsas. Além disso, muitas questões polêmicas, como as de natureza política são, em grande medida, sujeitas à interpretação e não podem ser incondicionalmente rotuladas como verdadeiras ou falsas.
Grönning (2019) lembra que Gwenaëlle Bauvois, pesquisadora na Universidade de Helsinque, relaciona o conceito de notícias falsas a partir do conceito de "pós-verdade", argumentando que termos como "contra-conhecimento" e "reinformação" são mais apropriados e definem a reinformação como um processo oportunista no qual os atores buscam influenciar o debate público.
O conceito de “mídia alternativa”, por sua vez, é problemático, pois tende a ter conotações positivas, por exemplo, ao fornecer uma alternativa bem-vinda às visões principais. Portanto, os pesquisadores preferem o termo  "contramídia", pois esses meios de comunicação tendem a se opor explicitamente à mídia convencional. Ao focar nos fatos e na fixação com verdadeiro e falso, a crítica apresentada em relação à contramídia frequentemente erra o alvo. É importante entender que os meios de comunicação alternativos operam primariamente dentro do campo da identificação, e não da informação, incentivando o público a se identificar como o coletivo desprivilegiado e uma força contrária à “elite”. As emoções são uma característica significativa dessa retórica.
Para a grande mídia, os meios de comunicação partidários on-line e seu conteúdo falacioso provaram ser um desafio problemático. Os pesquisadores conseguiram concluir que os esforços da mídia tradicional e das denominadas agências verificadoras de fatos (fact checking) para desmerecer notícias falsas ou histórias de conspiração não são apenas ineficazes - mas podem ser realmente contraproducentes (GRÖNING, 2019).
As histórias fabricadas que se apresentam como jornalismo sério provavelmente não desaparecerão, como ocorre nas grandes empresas de mídia, como a Rede Globo, a Rede Bandeirantes, os jornais Folha de São Paulo e Estadão, as revistas Veja e a IstoÉ, que se tornaram um meio para alguns pretensos jornalistas ganharem dinheiro e potencialmente influenciarem a opinião pública.
Sobre a relação já mencionada neste texto entre fake news e pós-verdade, Keane (2018) questiona se estamos vivendo em um mundo pós-verdade. Ele mesmo responde que se a resposta a este questionamento for "sim", então ela será "não" porque acaba-se por avaliar a declaração de maneira probatória, portanto as evidências ainda são importantes e os fatos ainda são importantes.  As universidades, para viver de acordo com a sua missão de promover o conhecimento, a verdade e a razão , são obrigadas a ser confrontadas com a objeção de que essas aspirações sejam concretizadas como uma busca da razão e da verdade objetiva, que atualmente, são vistas como anacronismos do Iluminismo.
Assim, responde Keane (2018), “não estamos vivendo em uma era pós-verdade”. Ele acrescenta que “vivemos em uma era revolucionária inacabada de abundância comunicativa”. Computadores em rede e fluxos de informação estão moldando as atividades de praticamente todas as instituições e a vida no seu todo.
O que exatamente se entende pelo termo pós-verdade? Paradoxalmente, a pós-verdade está entre as palavras-meme mais comentadas e mal definidas do nosso tempo. Pós-verdade é a tendência crescente de "discussões políticas e sociais" de ser dominada por "emoções em vez de fatos", ocorrendo quando compreende a comunicação que desloca e anula preocupações sobre a veracidade. Este é um fenômeno projetado para atrair e distrair a atenção do público e interromper o ruído de fundo da política convencional e da vida pública. O objetivo dos que utilizam a chamada pós-verdade é desorientar e desestabilizar as pessoas e as instituições, aproveitando as dúvidas das pessoas, afetando sua capacidade de ver o mundo com ironia, bem como atacando sua capacidade de fazer julgamentos, a fim de conduzi-los à submissão (KEANE, 2018).
Em 2016, o Dicionário Oxford selecionou "pós-verdade" como a "Palavra do Ano" e a definiu como "um termo relacionado ou denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e crença pessoal”. A definição proposta deriva da observação filosófica do novo conceito "pós-verdade", que se baseia nas principais teorias relacionadas ao antigo e familiar conceito de "verdade" e, com base em uma análise das características do fenômeno pós-verdade.
A primeira pessoa a usar o termo "pós-verdade" em seu contexto contemporâneo foi o dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, ao criticar o público americano por aceitar de forma submissa as mentiras do governo Bush e por decidir conscientemente viver em um “mundo pós-verdade”, ou seja, em um mundo em que a verdade não é mais importante ou relevante. O termo ressurgiu em 2004, no título de um livro de Ralph Keyes, “The Post-Truth Era”. Mas foi em 2016, no contexto das eleições presidenciais dos Estados Unidos e do referendo do Reino Unido sobre a retirada da União Europeia (Brexit), o novo e bastante obscuro termo se tornou predominante, e seu uso no contexto político disparou, quando o Dicionário Oxford selecionou esse neologismo como a “Palavra do Ano”.
Quando falamos em “polaridade” no início deste texto, foi no sentido de que no mundo de hoje, a verdade factual que vai contra os interesses de um determinado grupo político será recebida com maior hostilidade do que nunca. Segundo Hannah Arendt, citada por Brahms (2019), o maior antagonista da verdade factual é uma opinião, e não uma mentira, particularmente à luz da predileção atual de obscurecer a linha entre fato e opinião. Quando um mentiroso, deliberada e expressamente, quer ocultar uma falsidade, ele diz que a mentira é apenas sua opinião e, como qualquer pessoa em um país liberal democrático, desfruta da liberdade de expressão e do direito de expressar sua opinião. Ainda recorrendo a Hannah Arendt, Brahms (2019) refere que embora seja verdade que nossa verdade factual nunca está completamente livre de interpretação ou perspectiva pessoal, essa situação não pode servir como argumento contra a existência da realidade e dos fatos, nem justificar o embaçamento das linhas divisórias entre fato, opinião e interpretação. O resultado desse embaçamento é um público confuso que não consegue diferenciar fato, opinião e notícia falsa. Além disso, muitos dos que se envolvem no fenômeno pós-verdade tendem a vinculá-lo a idéias pós-modernistas e, particularmente, tendem a alegar que o fenômeno pós-verdade não poderia ter surgido se não fosse o pós-modernismo, que surgiu durante a segunda metade do século XX, após o fim da Guerra Fria, contra o pano de fundo da oposição dos filósofos e estudiosos acadêmicos para grandes ideologias, meta-narrativas e controle do establishment sobre a ciência, o conhecimento e a verdade.
Quanto à “era pós-verdade”, Pinking (2019) afirma que os jornalistas deveriam aposentar esse clichê, a menos que consigam manter um tom de ironia. Isso resulta da observação de que alguns políticos mentem muito, mas os políticos sempre mentiram muito. Diz-e que na guerra, a verdade é a primeira vítima, e isso também pode ser verdade na guerra política. Outra inspiração para o clichê pós-verdade é o recente destaque dado às fake news. 
Este é um tema atual e denso. Só promovendo o pensamento crítico e a educação em alfabetização digital se pode encontrar uma possível solução em longo prazo para esse dilema da informação, no Brasil e no mundo. Cada vez mais, é preciso aprender a peneirar e examinar as informações que se consomem, tanto publicadas em veículos de comunicação no Brasil quanto fora do país.

Referências
Agência Brasil. Senado aprova PL das Fake News; projeto segue para Câmara. 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-06/senado-aprova-pl-das-fake-news-projeto-segue-para-camara
Brahms Y. Philosophy of Post-Truth 2019. Disponível em:  https://www.inss.org.il/publication/philosophy-of-post-truth/#_edn3
Pinker S. Why We Are Not Living in a PostTruth Era: An (Unnecessary) Defense of Reason and a (Necessary) Defense of Universities’ Role in Advancing it. Skeptic 2019. Disponível em: https://www.skeptic.com/reading_room/steven-pinker-on-why-we-are-not-living-in-a-post-truth-era/?gclid=CjwKCAjwxev3BRBBEiwAiB_PWCbAryxrjk8HOLPRW2lU34sk6inlKxEJ6BBmg-djRMiqI55Ae1VV2hoCmCIQAvD_BwE
Keane J. Post-truth politics and why the antidote isn’t simply ‘fact-checking’ and truth. 2018. Disponível em:  https://theconversation.com/post-truth-politics-and-why-the-antidote-isnt-simply-fact-checking-and-truth-87364

Imagem: Pixabay