De grande repercussão, tanto no âmbito nacional
quanto internacional, foram as declarações recentes, em plena pandemia, do
controverso ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, ao tornar
públicas críticas de extrema gravidade ao governo brasileiro usando a palavra
“genocídio” para se referir às mortes causadas pelo novo coronavírus
SARS-CoV-2, na doença pelo Coronavírus 2019 (COVID-19) em todo o Brasil. Para usar a terminologia no contexto
jurídico, nesse caso, o ônus da prova recai sobre o acusador, e não sobre
a parte supostamente culpada.
Basicamente, ao que parece, o douto ministro do STF não sabe o que é genocídio. Ou terá sido uma declaração decorrente de dissonância cognitiva? Ou, o que é pior, talvez de tendência ideológica?... Esta é uma palavra "genocídio", de significado complexo, ainda não foi inteiramente esclarecido pelos estudiosos do tema. A palavra "genocídio" não existia até 1944. É um termo muito específico cunhado pelo advogado judeu polonês chamado Raphael Lemkin (1900-1959), que descreveu as políticas nazistas de assassinato sistemático durante o Holocausto, que assassinou aproximadamente seis milhões de seres humanos, entre judeus, ciganos, pessoas de orientação homossexual, pessoas com deficiência e opositores políticos. Raphael Lemkin formou a palavra genocídio combinando -geno, da palavra grega para raça ou tribo, com -cide, da palavra latina que designa o ato de matar. O genocídio é um crime reconhecido internacionalmente, em que atos são cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.
Genocídio é, atualmente, uma palavra usada para
significar o que o emissor quer que ela signifique, como qualquer outro modo de
comportamento humano, sobretudo na política. Chamar o outro de genocida é uma forma de desumanizá-lo. Desse modo, o significado da palavra genocídio
passou a permear o domínio da interpretação. É genocida quem o interlocutor chama de genocida. Por que o ministro Gilmar Mendes não
atribuiu o rótulo de genocidas aos governadores e prefeitos do Amapá,
Distrito Federal, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia e Santa
Catarina, implicados no roubo de bilhões de reais durante esta atual pandemia
por meio do superfaturamento e desvio das verbas que foram destinadas pelo
governo federal aos estados e municípios para o enfrentamento à COVID-19? A
resposta a esta pergunta provavelmente está no partidarismo e na politização
das declarações polêmicas do referido ministro.
Por outro lado, e lembrando da Venezuela de Nicolás Maduro, lá não está havendo um genocídio? Ou, por ser um regime sanguinário, dito narcocomunista, promovido e apoiado por Cuba, Rússia, China e Irã, não preencheria os critérios desse crime contra a humanidade? Ninguém lembra que poucos anos atrás o presidente do Irã pregava que o Holocausto nazista nunca existiu realmente? Aquele presidente do Irã era um negacionista? Alguém esqueceu que muitos partidos políticos do Brasil defenderam e ainda defendem a narcoditadura de Maduro? O próprio ex-presidente Lula da Silva e seu partido, o "Partido dos Trabalhadores", apoiam inconteste e publicamente a ditadura genocida que ocorre na Venezuela. Alguém esqueceu que os venezuelanos estão buscando alimentos no lixo, em franco desespero, sem medicamentos e sem assistência à saúde durante esta pandemia?... Como mostrou artigo publicado pela BBC, os níveis de nutrição de crianças menores de cinco anos já são comparáveis aos dos locais mais pobres do planeta. Estima-se que 70% das crianças venezuelanas encontram-se desnutridas. O próprio chefe da Organização dos Estados Americanos (OEA) comparou a crise na Venezuela ao genocídio em Ruanda.
Não se pode esquecer que estados socialistas, marxistas-leninistas, stalinistas ou maoístas, promoveram assassinatos em massa durante o século XX. O Holodomor (-holod significa fome, e -mor, que significa praga ou morte), que é considerado o primeiro genocídio do século XX (negado por intelectuais do Ocidente), foi um Holocausto Comunista em que ucranianos foram assassinados por Josef Stalin mediante inanição no período de 1932 a 1933, matando milhões de pessoas e seus efeitos se estenderam por gerações. A crueldade soviética destruiu a dignidade humana. O processo de Gâmbia contra Mianmar (antiga Birmânia), um país de maioria budista, iniciado em novembro de 2019 no Tribunal Internacional de Justiça de Haia, ilustra a importância política do genocídio entre nações, sendo a parte acusada liderada pela primeira-ministra de Mianmar e vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1991, Aung San Suu Kyi, que era tida como um símbolo internacional da luta pelos direitos humanos. Pode citar neste breve texto também o genocídio no Camboja comandado por Pol Pot, um membro do Partido Comunista francês que fora educado em Paris.
Esses atrozes governos, precisamente chamados de governos sanguinários, não foram genocidas? Basta ler o livro “Gulag, a History”, sobre a máquina de assassinatos em massa montada pelo stalinismo.
Portanto, o ministro Gilmar
Mendes não parece saber o que é genocídio.
A definição do que constitui um crime contra a humanidade foi estabelecida nos Julgamentos de Nuremberg, uma série de julgamentos realizados entre 1945 e 1949, no tribunal militar internacional para julgar os crimes cometidos pelos nazistas, oficiais do partido nazista, bem como empresários, advogados e médicos que colaboraram ativamente com o projeto nazista.
No entanto, apesar de esse ser o verdadeiro significado de crime contra a humanidade, os juristas de Nuremberg não haviam inventado nada de novo, pois enfatizaram as ideias do filósofo iluminista francês Montesquieu sobre o direito internacional, que ele descreveu como direito civil universal, no sentido de que todos os povos são cidadãos do universo. Matar alguém simplesmente porque ele existe é um crime contra a humanidade; é um crime contra a própria essência do que é ser humano. Não se trata de uma eliminação de indivíduos porque são adversários políticos, mas um crime dirigido contra a pessoa como pessoa, contra a própria condição humana da vítima.
O genocídio, portanto, consiste em atos hostis inter-relacionados e sustentados por seres humanos
contra certas categorias de outros seres humanos. Assim, o genocídio é um
crime em uma escala diferente de todos os outros crimes contra a humanidade e
implica uma intenção de exterminar completamente o grupo escolhido,
constituindo o mais grave dos crimes contra a humanidade.
Em 1948, a Organização das Nações Unidas aprovaram
um acordo internacional conhecido como Convenção para a Prevenção e Punição do
Crime de Genocídio, estabelecido como um crime internacional, que os países
signatários se comprometeram a prevenir e punir.
A ideia básica do genocídio está muito além das
preocupações partidárias (HUTTENBACH, 2007). Fundamentalmente, o ato de
genocídio incorpora a disposição de um grupo de destruir um segmento inteiro da
população humana. As ideologias – tanto de esquerda quanto de direita,
nacionalistas e internacionalistas - forneceram racionalizações para eliminar
seres humanos da população global. A palavra genocídio se tornou um grande estigma
verbal, um termo usado para descrever qualquer ato inteiramente execrável e
fascista perpetrado contra grupos minoritários que buscam afirmar sua
identidade e legitimar sua existência. Mas a palavra genocídio foi alvo de uma
espécie de inflação verbal, tornando-se uma hipérbole, da mesma forma que
aconteceu com a palavra fascista nos dias atuais. A palavra genocídio tem sido
aplicada de forma livre e indiscriminada a grupos tão diversos quanto os negros
da África do Sul, os palestinos na Faixa de Gaza e as mulheres de uma forma
geral, bem como em referência a animais, ao aborto, à fome e desnutrição
mundiais, e a muitas outras situações e grupos. Em relação às mulheres, por
exemplo, aparece a palavra gendercídio. Se genocídio é definido como destruição
de grupos específicos, e o estupro é conceitualizado como um crime contra a
autonomia sexual de um indivíduo, considera-se a ideia de que constituir uma
violação contra todo um grupo, à semelhança do genocídio (VITO et al., 2009).
Aniquilação em massa ou seletiva dos habitantes de
uma cidade, região ou país - por exemplo, assassinato em massa seletivo por
causa do gênero, chamado "gendercídio" (WARREN, 1985), em
analogia com o conceito de genocídio. O gendercídio seria um termo
gênero-neutro, em que as vítimas podem ser homens, mulheres ou pessoas
não-binárias, como a comunidade LGBTQIA+, enquanto feminicídio é definido como
o assassinato sistemático de mulheres pela condição se ser mulher. Contudo,
para Souza (2018), gendercídio (ou generocídio) e feminicídio são os nomes que
definem um mesmo fenômeno, o assassinato de mulheres por questões de gênero
(SOUZA, 2018).
As consequências inevitáveis desse mau uso da linguagem são a perda de
significado e a distorção de valores. Por exemplo, há um grande perigo na
maneira como a mídia aplicou o termo Holocausto à devastação causada
pela epidemia de cólera em Goma, cidade da República Democrática do Congo, onde
a doença é endêmica (DESTEXHE; SHAWCROS, 2014). Isso coloca o desastre
sanitário que resultou da entrada maciça de refugiados de Ruanda como
consequência do genocídio no mesmo nível do próprio genocídio, um crime em
massa premeditado, planejado e executado sistematicamente. Colocou-se a ênfase
na catástrofe das vítimas da cólera, embora isso desviasse a atenção do
verdadeiro crime já cometido. O fato de a cólera não escolher suas vítimas de
acordo com sua origem étnica foi inteiramente omitido. Por isso é que o
significado essencial de uma palavra é perdido quando ela é usada para
descrever qualquer desastre humano com um grande número de vítimas,
independentemente da causa. Como consequência, nenhum indivíduo deve ser
considerado culpado ou responsável porque a culpa é atribuída ao destino
histórico e de "circunstâncias infelizes", "do clima da
época" e, naturalmente, da ação incontida de vírus e bactérias.
No Brasil, o genocídio foi reconhecido como crime a
partir da Lei 2.889 de 1956. O caso de genocídio de maior repercussão
internacional no Brasil foi o chamado “massacre de Haximu”, atentado cometido
por garimpeiros contra 16 pessoas da população indígena Yanomami em
1993. A Procuradoria da República no Amazonas reconheceu em 2018 que
informações reunidas por meio de inquérito civil público, instaurado em 2012,
que houve redução demográfica do povo indígena Waimiri-Atroari pela abertura de
rodovias durante a ditadura militar no Brasil.Não há uma discussão
internacional suficiente sobre "genocídio cultural", que é uma ameaça
particular para as minorias indígenas do mundo (KINGSTON, 2015).
No livro "O Mundo Indígena na América Latina:
Olhares e Perspectivas", Paredes et al. (2018) analisam a dizimação de
povos indígenas no continente, mas colocando o Brasil como o país onde a
aniquilação dessas minorias foi mais intensa. Nos séculos 15 e 16, o contato
europeu viabilizou a transmissão de doenças a comunidades previamente isoladas.
Infecções dizimaram populações indígenas nas Américas do Sul e Central após a
chegada dos europeus, que trouxeram vírus e bactérias mortais, como os agentes
da varíola, sarampo, tifo e cólera, para os quais os nativos americanos não
tinham imunidade. Estas epidemias de varíola também geraram narrativas de
genocídio deliberado contra os americanos originais, mas historicamente são
narrativas fundadas em uma mistura de fatos limitados e evidências
circunstanciais que foram generalizadas. Supõe-se que foi um número
significativo de indígenas e grupos, porém, até hoje não contabilizado, de
índios vitimados por moléstias até então desconhecidas (ALMEIDA; NÖTZOLD,
2008).
A recente adoção da Declaração das Nações Unidas
sobre os Direitos dos Povos Indígenas reconhece os seus direitos à cultura, à
diversidade e à autodeterminação. Nesse sentido, Short (2010) argumenta
que o entendimento dominante de genocídio como matança em massa é
sociologicamente inadequado e está em desacordo com as ideias do autor do
conceito, Raphael Lemkin. Até o momento, as abordagens sociológicas do
genocídio, segundo o referido autor, falharam em apreciar a importância da
cultura e da morte social para o conceito de genocídio. Ele considera que não
há discussão suficientemente sobre processos culturalmente destrutivos, que não
envolvem assassinatos físicos diretos ou violência, por meio das lentes
analíticas do genocídio, especialmente quando se trata das experiências dos
povos indígenas no mundo de hoje.
De acordo com o último censo demográfico, realizado
em 2010 pelo IBGE, o Brasil 29,9% do número estimado para 1500, quando começou
a colonização. Por outro lado, também é considerado por movimentos sociais que
outro processo genocida é o da população negra e que, como afirma militante do
Movimento Negro Unificado, “o projeto genocida da população negra está em vigor
desde o dia 14 de maio de 1888”, segundo publicação do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sob o título de “Brasil: um país marcado
pelo genocídio da sua população negra, pobre e periférica”, publicada em 2018
(LIMA, 2018).
Vergne et al. (2015: 517) afirmam que as práticas
de extermínio no Brasil têm se dirigido a pobres, mas especialmente a negros
pobres. Considerando a definição jurídica internacional de genocídio, eles
fazem uma análise de como ocorre o aniquilamento desta população:
A caracterização de genocídio tem passado por
dificuldades óbvias: ninguém deseja ser considerado genocida. Genocídio é uma
forma de violência complexa; o efeito de um conjunto de práticas cotidianas
baseado no desejo de eliminação, ou de afastamento, do outro e por isso
consentindo, mesmo que silenciosamente, a sua eliminação. Embora a explicação
do genocídio não possa ser reduzida ao desejo de destruição do outro, não pode
operar sem ele.
Portanto, o termo genocídio, como é usado agora,
perdeu progressivamente seu significado inicial e está se tornando
perigosamente corriqueiro. Mais recentemente, em seu livro “Genocide”, Jones
(2006) expressou preocupação de que o termo "genocídio" possa se
tornar sem sentido se usado de maneira descuidada. O autor percorre um longo
caminho desde o genocídio dos nativos americanos até o genocídio contemporâneo
em Darfur, no Sudão, pelo governo do ditador Omar Al-Bashir.
A palavra "genocídio" é recente: apareceu
apenas em meados do século XX. Raphael Lemkin (1900-1959), um advogado judeu
polonês que, após o extermínio de judeus e minorias na Europa ocupada na Alemanha
nazista, pressionou a comunidade jurídica por décadas e escreveu o livro “Axis
Rule in Occupied Europe” (O Domínio do Eixo na Europa Ocupada) (1944). Neste
livro, uma primeira definição de genocídio aparece como a destruição de uma
nação ou de um grupo étnico em um plano coordenado de diferentes ações visando
à destruição de fundações essenciais da vida de grupos nacionais, com o
objetivo de aniquilar os próprios grupos.
Logo depois, em 1948, a Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e Punição do Genocídio adotou o termo, dando-lhe um respaldo legal (ONU, sem data). A ONU definiu "genocídio" como um crime internacional que implica "a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso". A ONU detalha os tipos de atos que se enquadram na definição de perpetração de genocídio. Isso inclui matar membros de um grupo, tomar medidas para impedir o nascimento de um grupo, transferir forçosamente os filhos de um grupo para outro e causar sérios danos corporais ou mentais aos membros de um grupo. Essa definição de 1948 foi adotada em lei por 80 países e não foi unânime. A China e os Estados Unidos não são signatários dessa Convenção.
Assim, o genocídio foi um termo concebido para
denominar a destruição de um grupo nacional como um coletivo. O Tribunal
Penal Internacional Permanente, um foro que passou a existir formalmente em
2020, por meio do Tratado de Roma, e com sede em Haia, na Holanda.
Genocídios ocorreram na Antiguidade, na Idade Média
e nos tempos modernos. Coderch e Puig (2008), apresentam uma lista de possíveis
- e, em alguns casos, controversos – genocídios ocorridos na história da
humanidade, entre os quais podem ser citados: Midianitas (Bíblia, Números 31:
1), a Batalha de Melos (415 aC), Cartago após a Terceira Guerra Púnica (149-146
aC), o cerco e conquista de Jerusalém durante a Primeira Cruzada (1099), as
conquistas mongóis / Genghis Khan (1190-1400), a conquista das Américas pelos
espanhóis depois de 1492, a escravidão de povos africanos no Atlântico (1500-1890),
o levante burguês durante a Revolução Francesa (1793-94), a divisão
da África após o Congresso de Berlim (1884-85), o domínio belga no Congo
(1885-1908), a deportação dos armênios pelo Império Otomano durante a Primeira
Guerra Mundial (1915-16), o terror stalinista no grande expurgo (1937-38), o
Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), as nações
deportadas durante a guerra por Stalin (1943-44), como os Chechenos, Tártaros
da Crimeia, por exemplo; o Khmer vermelho cambojano (1975-78), o massacre de
etnias tutsis em Ruanda (1990-1994); o massacre na região curda do Iraque
(1988), a dissolução da Iugoslávia (1991-1999).
De acordo com Kranz (2017), cinco genocídios estão
em curso atualmente: o dos Rohingya em Mianmar; dos Nuer e outros grupos
étnicos no Sudão do Sul; dos cristãos e Yazidis no Iraque e na Síria; de
cristãos e muçulmanos na República Centro-Africana; e dos Darfuris no Sudão.
A maioria dos estudiosos do genocídio concorda que
a ideologia desempenha um papel importante no genocídio e deve ser vista como
uma força causadora importante - este é um quinto elemento. Certamente, uma
política genocida é decidida por certas pessoas, detentores de poder no estado,
e um processo genocida é iniciado e mantido por eles em cooperação com muitos
outros em diferentes setores e em diferentes níveis da sociedade estatal
(ZWAAN, 2014). Nesse sentido, no livro “Genocídio: A Retórica Americana em
Questão” (POWER, 2004), a autora analisa a reação dos Estados Unidos,
considerando sua imprensa, organizações internacionais e políticos, aos
genocídios ocorridos no século 20. Para Santoro (2005: 494), a referida
autora considera que a "norma é a não-intervenção da comunidade
internacional em casos de genocídio, pelo menos até que a força da opinião pública
leve os Estados mais poderosos a reagir".
O foco de Harff (2017) foi a definição de democídio
em comparação com a definição mais restrita de genocídio. Na medida em que
isso implica a morte direta de membros do próprio grupo, fala-se em
democídio. Existe um objetivo normativo óbvio na Convenção sobre
Genocídio, que é esclarecer as causas e manifestações do genocídio (neste
ponto, a autora fala também em politicídio), de modo que as ações preventivas
sejam justificadas e exigidas pelo direito internacional. Em resumo, o
democídio conceitual incluiria todos os assassinatos em massa associados ao
genocídio e ao politicídio, mas também muitos outros que não visam à destruição
intencional de um grupo específico. E normativamente, seus objetivos também são
um pouco diferentes. O estudo do democídio leva à condenação de governos porque
correm o risco de matar um grande número de cidadãos, enquanto o genocídio visa
ajudar a identificar governos específicos para crimes específicos contra a
humanidade (HARFF, 2017).
Para outro exemplo mais recente, a mesma autora
considera o genocídio do Camboja (1975-1979). Ela destaca que alguns estudiosos
argumentaram que, segundo a Convenção sobre Genocídio, não ocorreu um genocídio
no Camboja, porque as vítimas pertenciam ao mesmo grupo étnico que os autores
do crime. Contudo, a linguagem da convenção não diz que o genocídio não pode
ser cometido por pessoas de mesma etnia, raça, nacionalidade ou religião que as
das vítimas. Assim, se essa lógica for considerada, os alemães que mataram
alemães durante a Segunda Guerra Mundial ou os Khmers que matam Khmers no
Camboja não podem ser contados como genocidas. No caso do Camboja, o conceito
de "auto-genocídio" tornou-se parte do arsenal de definição de alguns
estudiosos e assim, o conceito de democídio evitaria essa armadilha conceitual.
Ainda recorrendo a Harff (2017: 113), “qualquer situação interna de conflito carrega as sementes do genocídio”. Isso porque tipicamente as vítimas têm múltiplas identidades, portanto, gênero, cultura, status econômico/social e afiliação política podem desempenhar um papel secundário na vitimização. No caso do Camboja, a intenção parecia irracional para observadores externos, como matar grupos leais, mas faz sentido quando se olhava atentamente a ideologia confusa do Khmer Vermelho. Essa era uma ideologia remanescente do jacobinismo, uma revolução que se autodevorou, no século XVIII na França para a queda da velha ordem. Assim, Harff (2017) chamou esse episódio genocida de "politicida", tendo cunhado este último conceito para explicar que as vítimas foram mortas principalmente por causa de suas afiliações políticas ou sociais.
Voltando à questão inicial sobre a declaração do ministro do STF, o Sr. Gilmar Mendes, pode-se finalizar este texto com uma matéria jornalística. De acordo com o Jornal “Gazeta do Povo” (18 de julho de 2020):
“A desembargadora aposentada Sylvia Steiner, ex-juíza do Tribunal Penal Internacional, avalia que a política adotada pelo presidente Jair Bolsonaro para enfrentar a pandemia de coronavírus não configura genocídio ou crime contra a humanidade. Em entrevista ao portal O Antagonista, Steiner afirmou que a Corte de Haia não julga políticas, e sim crimes e pessoas. Para ela, cabe a Corte Interamericana de Direitos Humanos analisar a responsabilidade político-administrativa de atos que violem direitos fundamentais, como direito à vida e à saúde."
Por fim, uma vez tendo ensaiado o conceito de
genocídio, cabe uma outra pergunta: Como foi que a palavra genocídio como
hipérbole entrou na discussão política no que tange ao seu uso atual no Brasil
no sentido da mortalidade por uma pandemia sem precedentes na história da saúde
pública? Esta é uma pergunta puramente retórica, claro...
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Matéria do Jornal Gazeta do Povo: disponível em
https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/atuacao-bolsonaro-genocidio-tribunal-haia/
Acesso em 18 jul 2020.
Fonte da imagem: euromaidanpress
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