De contagione et contagiosis morbis et curatione,
de Girolamo Fracastoro. 3a. edição. Veneza: Giunta, 1584. Folha de rosto.
A origem da
sífilis ainda é um tópico de debate e pesquisa. Historiadores e estudiosos da História da Medicina consideravam até o início do século passado como uma infecção levada da América
para a Europa pelos navegantes das naus de Cristóvão Colombo. Recentemente, entretanto, paleontólogos
encontraram possíveis evidências de que a doença já existia no “Velho Mundo” antes do intercâmbio de Colombo. Isso tem sido contestado por outros pesquisadores, mas parece que ainda ainda é mais provável que Colombo tenha levado a sífilis para o “Velho Mundo”.
O nome da
doença, "sífilis", originou-se de um poema épico em latim “Syphilis, sive morbus
gallicus” (“Sífilis, a doença francesa”), publicado em 1530 por Girolamo
Fracastoro, médico, poeta e matemático de Verona, na
República de Veneza, que em sua obra “De contagione et contagiosis morbis” (“Sobre
o Contágio e as Doenças Contagiosas e sua Cura”) descreveu pela primeira
vez o tifo e escreveu sobre o contágio, em que partículas contagiosas podiam se
multiplicar no corpo humano e passar de pessoa a pessoa diretamente ou pela mediação de fômites, produzindo muitas doenças epidêmicas. Ele definiu o contágio como
sendo um tipo de infecção, que passava de um indivíduo para outro, por
intermédio de seres vivos que se reproduziam, denominando tais seres de seminaria
contagionum (sementes de contágio), implicando-os nos modos de transmissão das
doenças infecciosas (MARTINS, 1997).
Fracastoro estudou medicina, literatura, filosofia e outras disciplinas na Universidade de Pádua e recebeu seu diploma de médico em 1502. Ele então serviu como instrutor de lógica e anatomia na universidade por cerca de seis anos antes de retornar para sua casa em Verona, onde praticou medicina por duas décadas. Na história da epidemiologia, ele é reconhecido por seu De contagione et contagiosis morbis et curatione, publicado pela primeira vez em Veneza em 1546. Fracastoro parece ter fundido os escritos do historiador Gonzalo Hernandez de Oviedo y Valdez com uma fábula “Metamorfoses” do poeta romano Ovídio. Em seu poema “Syphilis, sive morbus gallicus”, Fracastoro conta a história de um pastor mítico chamado Syphilus (Sífilo) que mantinha os rebanhos do Rei Alcithous. Quando uma seca afetou o povo de Sífilo, ele teria blasfemado contra o deus Sol e culpando-o pela seca, recebendo como punição uma nova doença, a sífilis (IOMMI-ECHEVERRÍA, 2010). Lima (2003) afirma, no capítulo 6 de seu livro "História da Medicina: Um Guia Prático e Bem-Humorado" que o Syphilus do poema de Fracastoro era um pastor mítico "pervertido" e por isso fora castigado com a doença e a transmitiu a outras pessoas.
A publicação da primeira edição desse livro
ocorreu em 1530, poucas décadas após o surgimento da doença na Europa, e foi nessa
obra que Fracastoro introduziu o nome da enfermidade: Syphilis, sive Morbus
Gallicus ("Sífilis, a doença francesa"). Este livro peculiar tem
um estilo pouco comum em obras médicas: é escrito em versos, aparentemente
inspirado na obra de Lucretius, "De rerum natura", também em versos.
Os versos do
poema em que Fracastoro se refere a nomear a doença após Sífilo são (segundo
tradução de Frith, 2012):
Um pastor uma vez (não desconfie da fama antiga)
Possua essas penas, e Sífilo é seu nome.
Ele primeiro se vestiu de bubões terríveis à vista.
Sentiu dores estranhas e sem dormir passou a noite.
Dele a doença recebeu seu nome.
Os pastores vizinhos pegaram a chama que se espalhava
Durante a
década de 1520, ficou claro para historiadores e médicos da época que a doença
foi contraída e disseminada por meio de contatos sexuais. Na Europa, as
autoridades ficaram tão preocupadas com o aumento da doença que tentaram
controlar a prostituição e as relações sexuais fora do casamento. Henrique VIII
da Inglaterra (rei entre 1509 e 1547) tentou fechar os prostíbulos e os
balneários de Londres. Em muitos outros lugares, regulamentações estritas foram
emitidas para bordéis e casas de banhos, forçando as profissionais do sexo que
tinham doenças ou infecções a deixarem de trabalhar, e banhos mistos foram
proibidos.
Escritores e médicos dos séculos 16 e 17 estavam divididos sobre os aspectos morais da sífilis. Alguns pensaram que era um castigo divino pelo pecado e, como tal, apenas tratamentos mágico-religiosos o curariam, ou que as pessoas com sífilis não deveriam ser tratadas. O filósofo holandês Erasmo de Rotterdam (1465-1536) batizou-a de “a nova peste” (LIMA, 2003). Em 1673, Thomas Sydenham, um médico britânico, escreveu uma visão oposta de que o aspecto moral da sífilis não era da competência do médico, que deveria tratar todas as pessoas sem julgamento (FRITH, 2012).
A hipótese
colombiana de que a sífilis foi trazida da América para a Europa em 1492 foi
reafirmada nas décadas de 1950 e 1960 por vários historiadores e médicos, uma
vez que Fernandez de Oviedo y Valdes e Bartolome de las Casas foram testemunhas
oculares das condições em Hispaniola quando Colombo estava lá e ambos
consideraram que foram os tripulantes dos navios de Colombo que levaram a doença quando voltaram das Antilhas para a
Europa.
Por outro
lado, a teoria pré-colombiana surgiu no início do século XX, e que a epidemia
de Nápoles teria sido por febre tifoide ou paratifoide. A hipótese de que a sífilis
estava presente na Europa antes do retorno de Colombo da Hispaniola foi apoiada
pelos fatos de que muitas obras literárias e éditos religiosos se referiam à
sífilis antes do cerco de Nápoles de 1495, e também que o tratamento com
mercúrio tinha sido usado desde o século 12 para uma diversidade de doenças
infecciosas que possivelmente eram sífilis.
Vários
historiadores médicos no último século postularam outras razões para a sífilis
ser uma doença do “Velho Mundo” pré-colombiana - um maior reconhecimento leigo
e médico da sífilis desenvolvido em eras recentes, e que a sífilis evoluiu de
outras doenças treponemais para uma forma mais virulenta devido a uma
combinação de mudanças sociais, culturais e ambientais na época de Colombo. Nas
últimas décadas, o desenvolvimento da paleopatologia permitiu uma avaliação
cuidadosa dos esqueletos do Velho Mundo e muitos estudos publicaram seus
achados de evidências de doença óssea sifilítica, porém estudos paleopatológicos
recentes apontaram as dificuldades em distinguir a sífilis de outras doenças
que tinham sintomas semelhantes e deixaram cicatrizes ósseas semelhantes, como
hanseníase, osteomielite, osteoartropatia hipertrófica e histiocitose (FRITH,
2012).
Fracastoro
não associou a sífilis ao contato sexual. Como a enfermidade viria pelo ar, ele
sugeriu vários cuidados para se proteger dela, tais como exposição ao ar puro, fugir dos ventos quentes e dos lugares lamacentos ou pantanosos, viver
no cambo aberto onde o ar é sempre renovado pelos ventos.
Logo após o
aparecimento da sífilis, os médicos experimentaram muitos remédios e
descobriram que o mercúrio, embora sendo uma substância venenosa, poderia curar
essa doença. Fracastoro sugere várias explicações para a eficácia do mercúrio
e recomenda misturar o mercúrio com
várias outras substâncias, quase todas elas de cheiro desagradável. A pessoa
deveria cobrir todo o corpo com esse unguento e depois ficar coberto até transpirar intensamente.
Fracastoro
desenvolveu uma interpretação da sífilis que acomodava tanto os fatos
observados quanto os elementos fundamentais da tradição médica da época, mas não
se afastou dos princípios explicativos hipocráticos. É justamente a partir
dessas características da explicação médica renascentista que se acredita que
Fracastoro desenvolveu uma definição ampla da doença (FRITH, 2012; MARTINS
1997).
Existem duas teorias sobre as origens da sífilis venérea. Na primeira, conhecido como "hipótese colombiana" afirma-se que a doença originou-se na América e foi espalhado em 1493 por Cristóvão Colombo e sua tripulação, que a adquiriu dos nativos de Hispaniola (Ilha de São Domingos, nas Antilhas, a sudeste de Cuba, hoje pertencente à República Dominicana e ao Haiti) e a enfermidade seria transmitida por meio do contato sexual. Ao retornar à Espanha, alguns desses homens se juntaram à campanha militar de Carlos VIII da França, que sitiou Nápoles em 1495. Soldados acampados teriam exposto as populações locais de profissionais do sexo, o que ampliou a transmissão da doença. Mercenários infectados e em extinção espalharam a doença por toda a Europa quando eles voltaram para casa. Cinco anos depois de sua chegada, a doença se converteu em uma epidemia na Europa. Pela segunda teoria, ou "hipótese pré-colombiana", acredita-se que a doença sempre existiu na Europa, e o fato de que não havia casos relatados da doença anteriormente à década de 1490 seria porque antes dessa época não havia se diferenciado clinicamente.
Frutuoso
(2013) destaca que “a sífilis era a doença do outro, do estrangeiro”. Para os
franceses, a sífilis era o “mal napolitano”, para os italianos, era o “mal dos
franceses” ou “mal gálico”, os poloneses consideravam como a “doença dos
alemães”. Os russos tinham temor da “doença dos poloneses” e os holandeses
referiam como “doença espanhola”. Os turcos chamavam de “doença dos cristãos”.
Referências
Frith J.
Syphilis: Its early history and Treatment until Penicillin and the Debate on
its Origins. Journal of Military and Veterans’ Health 2012; 20 (4): 49-58.
Frutuoso
RAM. A História da Sífilis Na Marinha do Brasil. Arq. Bras. Med. Naval, Rio de
Janeiro, 2013; 74 (1): 8 -14
Iommi-Echeverría
V. Girolamo Fracastoro y la invención de la sífilis. História, Ciências,
Saúde-Manguinhos 2010; 17(4), 877-884.
Lima DR. História da Medicina: Um Guia Prático e Bem-Humorado. Rio de Janeiro: Medsi, 2003.
Martins RA, Martins LAP, Ferreira RR, Toledo MCF. Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis. São Paulo: Moderna, 1997. Cap. 6. Do Período das Grandes Descobertas ao Século XVIII [Online] Disponível em: http://www.ghtc.usp.br/Contagio/cap06.html