4 de setembro de 2022

COMPETÊNCIA CULTURAL NO CONTEXTO DA SAÚDE

O objetivo desta sala de aula invertida foi reconhecer a importância da competência cultural nos cuidados de saúde, compreendendo os seus componentes e partilhando exemplos, com base na leitura de um texto abordando o tema da competência cultural no contexto da saúde

A competência cultural ganha cada vez mais destaque na discussão sobre a qualidade dos cuidados de saúde no Brasil, que tem uma população diversificada, demandando uma gama de necessidades de saúde em rápida evolução, sistemas de crenças, valores e identidades culturais. A competência cultural é um componente crítico da prática da medicina porque garante o respeito pelo paciente e sua família. Compreender os valores, crenças e antecedentes de um paciente pode abrir uma porta para uma melhor comunicação e construir a base de um forte relacionamento médico-paciente, que leva a melhores resultados de saúde. Portanto, é necessário que o profissional de saúde compreenda que o conhecimento dos fatores socioculturais que afetam as interações e comportamentos é fundamental na sua prática. Ao mostrar compreensão e  respeito pelas múltiplas dimensões da diversidade, o profissional de saúde pode reconhecer e atuar considerando perspectivas diversas e concorrentes como um recurso para aprendizagem, cidadania e trabalho. Ao desenvolver a competência cultural, ele pode reconhecer e abordar adequadamente o preconceito em si e nos outros, e aprender a interagir efetivamente com pessoas de diversas origens.

Nesse encontro com a turma 111 de graduação em Medicina da Universidade Federal da Paraíba, no módulo de “Diversidade Étnica e Cultural na Medicina” empregando a técnica da sala de aula invertida. Os alunos leram um texto recomendado (GOUVEIA et al., 2019) antes do dia da sala de aula para se preparar para uma experiência de aprendizado ativa na sala de aula. O conceito central apresentado no artigo fora da sala de aula, e peça aos alunos que reflitam sobre o tema individualmente e, em seguida, discutiu-se mais detalhadamente com os colegas na classe.

A discussão na sala de aula começou com a menção ao problema da competência cultural anular a própria cultura, destaque colocado por Sergio, que ainda  comentou que, na realidade, parecia impossível pôr em prática todos os requisitos de competência cultural considerados no texto estudado. Foi levantado o exemplo da mutilação genital feminina, que envolve a remoção parcial ou total da genitália externa ou outra lesão nos órgãos genitais femininos por razões não clínicas. Trata-se de uma prática que não traz benefícios para a saúde de meninas e mulheres, o que constitui uma violação dos seus direitos humanos. Foi salientado, na discussão, que essa prática também viola os direitos de uma pessoa à saúde, segurança e integridade física, constituindo uma tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante. Então, qual seria o papel de um médico diante dessa prática de mutilação na comunidade que ele assiste. Como deveria ser fortalecida a resposta do setor de saúde em uma situação de desrespeito aos direitos humanos como essa? É uma pergunta que não tem uma resposta fácil. É uma prática que faz parte da cultura de um povo, contudo se há comprometimento de direitos humanos dessas meninas, é importante que órgãos como a Organização Mundial da Saúde desenvolvesse e implementasse diretrizes, ferramentas, treinamento e políticas para garantir que os profissionais de saúde possam fornecer assistência médica e aconselhamento a meninas e mulheres que enfrentam essa prática mutilante.  

Isabelle lembrou de experiências relacionadas a essa prática de mutilação das meninas e que foram partilhadas por uma amiga sua que trabalhava na organização internacional dos Médicos sem Fronteiras.

Abraão discordou de Sérgio, no sentido de que esses são exemplos extremos, e não são instrutivos, considerando que é preciso muito tato quando uma prática cultural arraigada em um povo afeta diretamente à saúde, e que nesse caso, o profissional precisa intervir. Ele continuou afirmando que geralmente espera-se demais do médico, que às vezes demora uma vida inteira para compreender uma cultura. Prosseguindo em sua contribuição para a discussão, levantou a questão de quando a cultura é um problema, ou seja, quando a cultura impacta a saúde de uma coletividade… Então, o que se pode fazer, do ponto de vista do profissional da saúde?

É reconhecido o fato de que os comportamentos culturais têm implicações importantes para a saúde humana. A cultura, um sistema socialmente transmitido de conhecimento compartilhado, crenças e/ou práticas que variam entre grupos e indivíduos dentro desses grupos. As pessoas de uma determinada cultura têm um desejo inato de se conformar às normas e valores socialmente aceitos do seu grupo. Com o passar do tempo, algumas dessas normas tornam-se padrões aos quais todos os membros da comunidade devem aderir. O desvio desses padrões é visto como absurdo, errado ou francamente anormal. No entanto, muitos desses costumes culturais promovem comportamentos com consequências negativas para a saúde.

No caso em questão na discussão, a mutilação genital de meninas em determinadas culturas, tal prática tem despertado preocupação mundial devido às suas profundas consequências deletérias sobre a saúde, capacidade reprodutiva e bem-estar psicológico das mulheres. Coloca-se em citação direta, o que Ogundipe (2020, p. 2) escreveu sobre a mutilação genital feminina (MGF), considerando que essa prática jpa foi citada anteriormente nas discussões da turma:

É uma prática cultural comum em partes da África, Ásia e Oriente Médio. Parte ou todo o órgão genital feminino externo é cortado como uma prática cultural que se acredita reduzir a libido e aumentar a castidade das mulheres. Mais de 200 milhões de meninas e mulheres, principalmente das áreas mencionadas, sofreram esse tipo de mutilação. Este procedimento geralmente é feito por atendentes tradicionais usando dispositivos não estéreis em meninas desde a infância até cerca de 15 anos de idade. Além do risco de infecções pela forma anti-higiênica do procedimento e do equipamento não estéril utilizado, pode haver sangramento grave, lesões no trato urinário, bem como aumento subsequente do risco de parto complicado e morte do recém-nascido. O paradoxo da prática é que, em vez de promover a castidade sexual como acreditam os praticantes, a MGF na verdade causa relações sexuais dolorosas e dificuldades para alcançar a satisfação sexual. Não tem absolutamente nenhum benefício para a saúde das mulheres e tem sido associado à depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e baixa autoestima.

Ogundipe (2020) também referiu como se deve abordar as práticas culturais com consequências adversas para a saúde. Para a MGF, que foi declarada um problema de saúde pública devido à prática generalizada da cultura e ao grande número de meninas e mulheres cuja saúde física, psicológica e reprodutiva foi prejudicada, esse autor recorre ao apelo de uma resposta colaborativa internacional à prática envolveu a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). O referido autor citou ainda esforços que poderiam  erradicar a MGF, incluindo os seguintes: envolvimento internacional mais amplo para impedir a MGF; órgãos internacionais de monitoramento e resoluções que condenam a prática; e estruturas legais e apoio político crescente para acabar com a MGF (isso inclui uma lei contra a MGF em 26 países da África e do Oriente Médio, bem como em 33 outros países com populações migrantes de países praticantes de MGF). 

Ogundipe (2020) lembrou que, embora os esforços sustentados e colaborativos já tenham resultado na redução da prevalência da prática cultural, se as próprias comunidades que praticam a MGF decidirem abandonar a prática cultural, a MGF poderá ser erradicada. Quando os indivíduos influentes e as partes interessadas são motivados a apreciar os efeitos nocivos da prática cultural, eles podem se envolver na influência de outros em suas comunidades, o que deve ser muito bem planejado, gradual e implantado de forma neutra e não ofensiva. Neste sentido, sem serem abertamente críticos de certas práticas culturais, as pessoas das comunidades podem ser conscientizadas sobre o impacto de determinada prática na saúde usando métodos sutis, como dramatização, filmes e literatura, de forma cuidadosamente preparados.

Sérgio interveio assegurando a importância de mitigar riscos por meio do uso de  instrumentos limpos, o que poderia ser orientado pelo profissional de saúde da comunidade em que se pratica a MGF.

Helena comentou, neste sentido, que a atitude de um médico reflete o ideário da categoria, e que o profissional pode se sentir impotente diante da situação, e minimizar os danos pode significar que ele está praticando o ato de cuidar dos usuários do seu território, mas não pode chancelar o comportamento danoso das pessoas na comunidade em que trabalha e quando se depara com atitudes insalubres e prejudiciais que fazem parte da cultura local. Ela exemplificou esse aspecto controverso com o caso da toxicomania, o que pode constituir um dilema moral para os profissionais de saúde. Redução de danos é um termo amplo que se aplica a políticas, programas e práticas que visam minimizar as consequências sanitárias, sociais e econômicas do abuso de substâncias psicoativas. A ideia por trás da redução de danos não é necessariamente eliminar o abuso de substâncias, mas diminuir seus efeitos nocivos. A redução de danos reconhece que muitas pessoas continuarão a abusar de drogas e se envolver em outros comportamentos perigosos, apesar dos esforços de prevenção. Também aceita que muitas pessoas não querem ou não podem procurar tratamento. Mas, embora algumas pessoas que usam substâncias possam não necessariamente precisar de tratamento, é útil que elas estejam cientes dos recursos que podem ajudar a minimizar os danos do uso de drogas. Outro exemplo foi referente a costumes do Sertão Nordestino no Brasil, onde existe uma prática tradicional de se aplicar estrume de vaca ou cinzas de carvão sobre o coto umbilical do recém-nascido.

Helena afirmou ainda que as pessoas confundem a dimensão de compreender e de se enquadrar em atitudes relacionadas à cultura. Ela e L. H. Fernandes exemplificaram uma situação observada na comunidade, em que uma usuária do serviço de atenção primária convenceu seu marido diabético idoso e de baixa escolaridade a tomar corticosteróide porque esta classe de fármaco havia sido usado com bom resultado por outra pessoa conhecida. Este problema está relacionado à literácia em saúde, que não se limita à capacidade de ler e escrever, mas também a aptidão para falar, ouvir, identificar conteúdos informativos apropriados, ser capaz de lutar por direitos pessoais, da coletividade e pelo acesso à educação em saúde e ao acesso e boa qualidade de atendimento no sistema de saúde. L. Azevedo lembrou que muitas tradições religiosas envolvem limitações específicas na alimentação, desde a Quaresma no Cristianismo até o Ramadã Islâmico, e que ainda que ainda inexistam conclusões definitivas sobre os efeitos dessas práticas de jejum na  saúde humana, sabe-se que uma redução obrigatória de quilocalorias não é bem tolerada por muitos indivíduos. 

João Max mencionou um traço cultural etíope que também tem impacto sobre  saúde, mas eu não consegui registrar sua observação a tempo.

José Victor salientou que é importante reconhecer um limite entre ética e competência cultural. Competência cultural e tomada de decisão ética são dois conceitos separados, mas intrinsecamente relacionados, que são centrais para os serviços prestados por todos os profissionais de saúde. A diversidade cultural implica um desafio ético, por diferentes razões. Uma é que existem diferenças nas percepções morais e julgamentos morais entre as culturas e, consequentemente, surge uma tensão entre o universalismo moral (princípios ou padrões éticos universais) e o relativismo cultural moral (normas éticas locais ou culturais como fonte exclusiva de padrões éticos). O debate sobre o relativismo ético e a ética universal ainda está em aberto, e tem consequências importantes tanto para a ética médica quanto para a gestão intercultural. Alguns optam por aceitar o relativismo ético, enquanto outros oferecem fortes argumentos contra isso.

Sérgio assinalou uma situação em que um paciente idoso com diagnóstico de COVID-19 e que não aceita, que mesmo se for clinicamente indicado, ser submetido a uma intubação orotraqueal para ventilação mecânica. Ele perguntou se esse paciente teria esse direito e qual seria a tomada de decisão do médico. Os idosos podem representar um grupo específico de pacientes de alto risco para desenvolver COVID-19 com deterioração clínica rapidamente progressiva. De fato, em indivíduos mais velhos, a imunossenescência e os distúrbios comórbidos são mais propensos a promover tempestade de citocinas induzida pelo vírus, resultando em insuficiência respiratória com risco de vida e envolvimento multissistêmico. A necessidade médica de hospitalização é determinada principalmente pela presença de uma condição de saúde aguda de gravidade suficiente para que seja necessária uma intervenção diagnóstica ou terapêutica contínua, ou monitoramento cuidadoso. Muitos médicos desejam respeitar os desejos do paciente de não aceitar determinada conduta determinada pela equipe médica, em virtude do direito do paciente à autodeterminação ou autonomia, enquanto tentam fazer o que acham melhor para o paciente (agir com beneficência). Na prática, gerenciar esse problema apresenta mais complicações do que simplesmente identificar e priorizar os princípios éticos relevantes. A comunicação médico-paciente e o consentimento informado são relevantes para o manejo prático. O consentimento informado na decisão de não aceitar uma conduta médica indicada criteriosamente em um quadro agudo é um dos elementos mais importantes do cuidado para os pacientes que tomam essa decisão. Uma decisão informada significa que o paciente chegou à decisão, conjuntamente com seu médico, sem ser submetido a coerção e com total compreensão dos riscos, benefícios e alternativas da decisão a ser tomada.

Jerrimarque ponderou que a assinatura do termo de consentimento informado em um caso como esse, de atendimento de emergência, geralmente é usado para proteger, ou eximir de culpabilização, o hospital e o médico, e não para proteger o paciente. Ele exemplificou com um evento ocorrido em sua família, em que um paciente caiu da própria altura e foi levado pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) ao hospital. Esse paciente era um homem sertanejo, estoico, que só se envolvia com serviços de saúde em situações extremas. 

Bianca lembrou de uma experiência vivida em práticas de uma liga estudantil, em que um paciente diabético admitido em um hospital apresentava glicemia muito elevada e  não queria ficar internado. Inicialmente recebeu orientação e informações dos riscos de uma médica que tentou dialogar com ele, e depois, com um outro médico do serviço, que tratou de fazer o paciente assinar um termo de consentimento informado e deixá-lo ir para casa sem mais diálogo.

Sérgio também se recordou de um paciente diabético que não aderia ao tratamento, embora já estivesse com problemas renais e de retina por causa da doença. Sérgio, então, em busca de uma solução para o caso, ponderou que um “choque de realidade” seria uma forma de fazer a pessoa passar a aderir ao tratamento, possibilitando a modificação da forma como ele enxergava a doença. Mas esta conduta poderia piorar a situação, pois um paciente fortemente resistente à terapêutica provavelmente não responderia positivamente ao ser submetido a uma coerção sob a forma de ameaça. Esse paciente deve entender e aceitar o que precisa fazer antes de seguir as recomendações médicas. L. F. Fernandes também falou das dificuldades para convencer seu avô a buscar tratamento e concordou que era um processo complexo motivar determinadas pessoas com personalidade difícil e crenças negativas arraigadas sobre a necessidade de aceitar assistência em saúde.

As crenças de saúde dos pacientes são afetadas por sua literácia (alfabetização) em saúde, e essas crenças também contribuem para a (não) adesão. Assim, a alfabetização em saúde dos pacientes é fundamental para sua capacidade de adesão. É claro que a melhor maneira de os médicos facilitarem o envolvimento de seus pacientes nos cuidados varia entre as culturas. É importante verificar também que distúrbios psicológicos são frequentemente comórbidos com doenças crônicas, aumentando suas taxas de morbidade e mortalidade associadas, e muitas vezes não são reconhecidas ou tratadas. 

Marina aludiu à importância de não desistir de pacientes considerados difíceis.

Rafael também compartilhou a vivência de uma situação em que uma paciente que era médica, ao ter o diagnóstico de câncer de mama avançado, optou por não iniciar o tratamento apropriado para a doença. Honrar as preferências do paciente é um elemento crítico na prestação de cuidados nesse caso, considerando que, sendo médica, a paciente pode entender que muitas formas de tratamento em casos de câncer avançado são fúteis. Por outro lado, é importante também avaliar se essa paciente não está sofrendo de um transtorno depressivo que a está deixando sem esperanças.

Flávia participou da discussão, mas eu não consegui registrar sua fala.

Após finalizar a aula, Alberto perguntou sobre evidências de que os estudantes de medicina frequentemente ficam mais frios no final do curso de graduação, e passam a se importar menos com o paciente, como se desenvolvesse uma  “couraça”. À medida que os alunos avançam na faculdade de medicina, espera-se  que o envolvimento empático no atendimento ao paciente melhore, mas não é sempre o que acontece. A empatia é geralmente considerada como uma capacidade afetiva: a capacidade de ser sensível e preocupado com o outro e uma capacidade cognitiva: a capacidade de compreender e apreciar a perspectiva da outra pessoa.